Durante seis meses – no final de 2007 e meados de 2008 – o jornalista, escritor e compositor Carlos Rennó se entregou a uma árdua e fascinante tarefa: versionar para o português standards norte-americano. Não se trata de traduções livres, mas de recriações poéticas em que o abrasileiramento – ou brasilificação, como define – não arranha o sentido original das letras no que tange a métrica, por exemplo. Nesse ponto, Rennó é uma referência na música brasileira.
O projeto ganhou o nome de “Nego” (Biscoito Fino) e foi tocado adiante com o violoncelista e maestro Jacques Morelenbaum, responsável por estofar com habilidade ao inserir elementos da música popular brasileira. Instrumentistas de quilate lá estão como Toninho Horta, Hamilton de Holanda, Leo Gandelman, além de David Feldman, Gabriel Improta, Alberto Constinentino e Marcelo Costa. Moogie Canázio também assina a produção.
Catorze faixas – uma faixa bônus, “O bobo e o babaca” (The Babitt and the bromide) para download – e um elenco estelar que compreende, entre outros, Gal Costa, Maria Rita, João Bosco, Luciana Souza, Moreno Veloso, Olivia Hime, Carlinhos Brown, Elba Ramalho, Paula Morenlenbaum e, claro, Zélia Dunca – muito chegada um projeto coletivo a moça.
Todos emprestaram vozes a compositores como Richard Rodgers, Lorenz Hart, Irving Berlin, Jerome Kern, Jerome Kerr, Oscar Hammerstein e os irmãos George e Ira Gershwin, entre outros. Em comum, todos judeus e responsáveis por clássicos da música popular norte americana feitos nas décadas de 20, 30 e 50.
O que muitos podem desconhecer é que esses compositores brilhantes incorporaram elementos musicais negros em seus trabalhos. Empatia sonora, conforme frisa Rennó no encarte do disco (belo trabalho gráfico, diga-se), que fez os dois grupos étnicos e discriminados se identificarem.
Rennó e Morelenbaum, a princípio, tinham o propósito de fazer uma espécie de volume dois de “Cole Porter, George Gershwin: canções e versões” (2000/2001, selo Geléia Geral). Planos alterados quando a diretora executiva do Centro da Cultura Judaica, Yael Steiner, os procurou e propôs um projeto musical para a instituição. Mãos à obra, Rennó recriou clássicos do jazz (a grande maioria passada pelo crivo da grande senhora Ella Fitzgerald) prontamente aceito e com aval da gravadora Biscoito fino.
Todos os intérpretes convocados contribuíram, cada um ao seu jeito, para o desdobramento de um projeto que vem a ser uma referência na versão de clássicos, tanto literal quanto sonoro. Uns e outros se destacam, mas o todo garante a qualidade artística e poética de “Nego”.
Entre eles, Maria Rita, abençoada, chama o ouvinte para perto em “Encantada” (Bewitched, Bothered na Bewilldered), que vem a ser a peça que levou pelo menos três meses para ser recriada. A versão condensa, por exemplo, ironias singelas, languidez que não fogem à atmosfera original (“Em seus braços eu me enrolo/ que nem um neném/ Caso é aquela coisa louca/ Nem dormindo estou, /Desde que esse meia-boca/ Me desconcertou”) .
BOSS E SINHÔ – João Bosco vale-se do grande intérprete que é ao defender “Sábio rio” em que o “boss” (chefe) transforma-se em “sinhô: “Baixe os olhos, / Não diga não/ Não deixe puto o seu patrão” diz os versos iniciais.
Gal Costa abre o disco e é possível sentir emoção de quem há tempos se esconde em burocráticas releituras. “Meu romance” é pouco para a voz dessa mulher, mas é bonita do mesmo jeito. Luciana Souza, há tempos inserida as nuances do jazz, é outro ponto bacana ao cantar “O homem que partiu”.
Moreno Veloso, bissexto cantor, faz o que pode em “Tão fundo é o mar”, com arranjos acentuados por contrabaixo e cellos. Falsetes reverberados pelo canto do pai grande. Elba Ramalho, sempre convidada a cantar xotes ,xaxados e afins, surpreende em “Tenho um xodó por ti”, em que o acordeom de Dominguinhos faz as vezes de uma gaita e dialoga com o piano de João Donato. Seu Jorge, longe dos samba rock radiofônicos, viaja bem nos vocais sobrepostos.
Porém, “Nego”, a faixa concedida a Paula Morelenbaum, condensa o espírito do disco. Perfeita para a uma voz cheia de malícia e malemolência a falar em fissura causada por um amante. Ou Lover, nome original.
“Nego” não possui pontos frágeis. Não contém espaços para questionamentos. “Nego” é jóia lapidada. Deve percorrer algumas cidades no próximo ano, entre elas Curitiba. Deve virar DVD também.
“Nego” é para agradar gregos e baianos, judeus e americanos, negros e brancos e amarelos. Todos!
A seguir a entrevista que Carlos Rennó concedeu ao blog Sintonia Musical
No final dos anos 60, pediram para o Caetano Veloso verter algumas canções dos Beatles e ele disse ter feito “transcriações”. É o seu caso com “Nego”?
É. Quando o Caetano usou esse termo naquele período ele tinha por referência os irmãos Campos (Haroldo e Augusto) no campo da poesia. Eles se notabilizaram pelo trabalho inovador no campo de tradução. Eu também sou inspirado pelo trabalho de tradução poética dos concretistas.
Você recriou ou “transcriou” letras de standards norte-americanos com certa brasilidade. Por exemplo, “Lover” virou “Nego”. Interessante, gostei.
Você percebeu bem. O objetivo era mesmo brasilificar.
A idéia inicial do projeto era essa mesma do disco ou passou por transformações?
A idéia inicial seria produzir, digamos assim, um volume dois de Cole Porter e Gershwin (“Cole Porter, George |Gershwin: canções e versões” /(2001, selo Geléia Geral, produção musical de Rodolfo Stroeter) Enquanto procurávamos, Jacques Morelembaun, uma forma de realizar isso, a presidente da Centro da Cultura Judaica, Yael Steiner, nos procurou e pediu que apresentássemos um projeto para que o centro realizasse em São Paulo. Nós simplesmente transpusemos a idéia para algo mais adequado ao Centro de Cultura Judaica, mas sem deixar de ter sua pertinência artística. Porter e Gershwisn foram dos maiores compositores de canção americana clássicas. Mas os maiores, em sua maioria, era compositores de origem judaica com exceção de Porter e Johnny. Nós propusemos a idéia de verter canções desses compositores e o CCJ abarcou a idéia.
Interessante também é saber que compositores de origem judaica absorveram elementos da música negra norte-americana e fizeram canções universais. A responsabilidade de versionar esse universo é grande, não?
É. É uma responsabilidade artística muito grande porque são canções que figuram no patamar mais alto a que chegou a arte da canção popular.
Esse disco serve de referência para futuras versões?
Acho que sim, mas sou suspeito a dizer. Espero que seja porque eu trabalhei muito duro nas versões. E não creio que sem trabalho árduo se possa a chegar a resultados que eu considero necessários.
REPERTÓRIO E INTÉRPRETES
* Meu romance (My romance) / Richard Rodgers – Lorenz Hart
Gal Costa
* Inquieta, tonta e encantada (Bewitched, bothered and bewildered)/ Richard Rodgers – Lorenz Hart
Maria Rita
* Tão fundo é o mar (How deep is the ocean) / Irving Berlin
Moreno Veloso
* Verão (Summertime) / George Gershwin -Ira Gershwin – Dubose Heyward
Erasmo Carlos
* Estava escrito nas estrelas (It was written in the stars)/ Harold Arlen – Leo Robin
Emílio Santiago
* Nego (Lover) / Richard Rodgers -Lorenz Hart
Paula Morelenbaum
* Sábio rio (Ol’ man river) / Jerome Kern – Oscar Hammerstein
João Bosco
* Fruta Estranha (Strange fruit) / Dwayne Wiggins – Maurice Pearl – Lewis Allan
Seu Jorge
* Tenho um xodó por ti (I’ve got a crush on you) / George Gershwin – Ira Gershwin
Elba Ramalho, Dominguinhos e João Donato
* Queria estar amando alguém (I wish I were in love again) / Richard Rodgers – Lorenz Hart
Ná Ozzetti e Wilson Simoninha
*O homem que partiu (The man that got away) / Harold Arlen – Ira Gershwin
Luciana Souza
* Mais além do arco-íris(Over the rainbow) / Harold Arlen – E.Y. Harburg
Zélia Duncan
* Natal lindo (White christmas) / Irving Berlin
Olivia Hime
* Meu romance (My romance) / Richard Rodgers – Lorenz Hart Gal Costa e Carlinhos Brown
(**) Todas as versões de Carlos Rennó, com exceção de “Sábio rio” em parceria com Nelson Ascher
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