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Bato palmas em frente à casa simples e acolhedora. Ouço ao longe: “Entra, fio, tô aqui na cozinha”. Peço licença, agô. Um imenso sorriso me dá as boas vindas.

Beijo o rosto, abraço aquela senhora tão generosa que prepara comida aos seus. “Cozinhando não, tô ajambrando”, responde com bom humor. Quanto prazer essa negra valente e de olhos infinitos encontra no cotidiano. Quanto!

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Senhores, dona Vilma Santos. Ou Yá Mukumby, nome de origem quimbundo adotado há 40 anos quando os santos lhe deram o axé vital para tornar-se uma sacerdotisa do candomblé. Mãe de santo, yalorixá! Ogum de frente, Iansã com Obaluaê no ajuntó, a alternância dos orixás.

Nação “Angola bate-folhas”, zeladora do Ylê Axé Ogum Mege, filha de Yoá Doessi Belé. Aos 58 anos, Dona Vilma popularizou o candomblé em Londrina com a transcendência dos metais de Ogunhê.

Eu a chamo Dona Yá, redundância afetiva. Respeitadíssima em Londrina, Dona Vilma tem muita história para contar. E cantar! E como canta, viu?! Cante, Dona Yá.

Músicos a postos, imagens projetadas no telão, referências. Em off, uma voz forte e volumosa entoa os versos iniciais de “Canto das três raças”. Entra em cena Yá Mukumby elegantemente trajada (são quatro trocas de figurino, em que prevalece a cor azul de Ogum) e cantando sambas clássicos e profanos.

Impactante a imagem daquela mulher que imprime dinâmica própria às canções. Diz ela não ter muito ouvido aos instrumentos de cordas, que se “afina” pela percussão. Olha só!

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É uma sambista. Diz ela que não é. Nós que fomos ao show “VILMA – de todos os – SANTOS” afirmamos que sim. O espetáculo faz parte das comemorações de quatro décadas de iniciação no candomblé. Haverá mais três apresentações, uma delas acontece nesta sexta-feira (dia 21), às 18h30, na Concha Acústica.

“VILMA – de todos os – SANTOS “ é dividido em quatro atos: Abertura, Pé na cozinha, Orelha no rádio e Axé dos seus ancestrais. Santos da música popular brasileira: Caymmi, João da Bahiana, Lupicínio Rodrigues, Noel Rosa, Wilson Batista, Silas de Oliveira, João Bosco, Aldir Blanc, Martinho da Vila e Pixinguinha em “Yaó” (iniciados).

Yá gosta desse batuque porque São Pixinguinha inseriu elementos das religiões afros (Jacutá – terreiro; akikó -galo) no samba do Rio de Janeiro.

Cores impávidas sobre a negra pele. Voz que parece ter visto Dorival Caymmi falando com Oxum e olhos de quem ouviu o som de rubras cascatas brotadas das costas dos santos, chibatas.

“VILMA – de todos os – SANTOS” vai cativando, cativando até a platéia arriar embrutecimentos. Batemos palmas em frente ao palco. Yá cantadora de samba. Yá do sorriso grande. Yá artista da vida. Yá do bem-querer.

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Acabou o show? Não! No meio da platéia, ela rasga as convenções com sambas de roda há tempos colhidos. Sambas profanos, de senzala, de resposta, de caboclo! Forma-se a roda. Cantamos, dançamos, rimos, queremos mais: “Eu quero me casá com uma dúzia de muié/ Três Ana, três Maria, Três Bastiana, três Zabé”

A festa vai longe. Há um brilho a mais nos olhos de Dona Yá, mãe de santo, mãe de canto. “VILMA – de todos os – SANTOS” merece registro audiovisual. Quando sai mesmo? Queremos!

A senhora está comemorando os 40 anos de sacerdócio com um show de samba. Por quê?

(risos) É interessante porque as pessoas perguntam se vai haver uma festa no Ilê (terreiro). Eu respondo que sim, não marquei a data ainda, mas terá uma comemoração aos 40 anos do meu santo, sim. Sempre trabalhei com projetos de samba de roda, cantei um pouquinho aqui e ali mais para divulgar a cultura do samba, as cantigas sacras. O Bernardo Pellegrini (amigo, jornalista, escritor, homem de idéias), com quem venho conversando desde 1994, mais ou menos, propôs fazer uma produção para que eu cantasse música popular, samba. Veio a calhar agora.

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A senhora se considera uma sambista, Dona Vilma?

(risos) Não. Atualmente estou interpretando samba, mas não me considero sambista. Eu gosto, aprecio muito o samba. Aliás, tudo o que é cultura popular é comigo mesmo. Ah, não tem como não gostar de samba principalmente quem faz candomblé e trabalha com os mitos afros.

Os sambas têm um excelente aparato instrumental, alguns mais lentos outros mais rápidos. Qual a dinâmica do show?

A dinâmica é como eu consigo cantar. Na verdade, eu não tenho tanto ouvido musical para o violão, acordeon, baixo… Eu me afino, me levo pela percussão que me norteou a vida inteira porque no candomblé prevalecem as cantigas e a percussão.

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O samba sai do terreiro ou o terreiro vai ao samba?

O samba sai do terreiro com o nome de semba. Canto no show alguns sambas de roda também chamados de vadiagem. A vadiagem era o que os escravos cantavam nas senzalas. Nesses sambas eles falavam do feitor, do que aconteceu no dia, de quem bateu, de quem apanhou, de quem maltratou, de namoro, de um monte de coisas.

Eram códigos, forma de protesto?

Era uma forma de contar aos demais escravos o que estava acontecendo. Os sambas eram improvisados, era uma maneira de se conversar. Então, se os sinhôs e as sinhás ouvissem não dariam conta do que estava se passando, do que estava se narrando.

A sensação de pisar no palco e comemorar 40 anos de ofício qual é?

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Eu continuo levando minha vida… Eu lavo roupas, passo roupas, cozinho, dou oficinas, faço os ebós (comidas dos santos), atendo as pessoas no terreiro, sou militante do movimento negro… Então cantar no palco para mim é engraçado.

Engraçado?

(risos) É, porque pode até parecer que eu não tenho mais nada o que fazer…

Que tipo de cantora a senhora é?

Não sei… Eu só canto! Dá um frio na barriga, um nervosismo de saber que não sou uma cantora de fato e que estou lá no palco… Ainda bem que não desafino, tenho uma voz legal, mas fico meio assim porque tem muita gente boa cantando por aí, fio.

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A senhora sobe ao palco como Yalorixá ou como cantora?

(risos) Eu subo como dona Vilma, conforme sou tratada por aí, mas claro que não me esqueço que sou Yá Mukumby.

A senhora não teme que as pessoas possam pensar ser um show com cantos de candomblé, de macumba?

Tem essa coisa sim. Mas olha, eu sinto que levei o candomblé para as ruas. Eu realmente sinto isso! Se tem uma festa de santo no meu terreiro para lá vão pessoas de todas as camadas sociais… Tem uma coisa: eu bato no peito e digo sempre que sou negra e macumbeira e vim para trazer cultura popular e candomblé sem meter medo.

A palavra macumba mete medo nas pessoas, né?

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Mete medo, sim! E eu uso essa palavra para chamar a atenção mesmo. Há pessoas que falam assim: “ela é legal, mas será que faz mal para alguém?”. Eu respondo que sou macumbeira porque macumba é um ritmo. E se eu danço esse ritmo para os orixás, portanto, sou macumbeira. E sou feiticeira também porque faço os ebós, os benzimentos. Fazer tudo isso é feitiço, magia.

O que caracteriza senhora é a generosidade. A senhora não faz mal…

Há quem ache… Existe muita discriminação e quando percebo isso eu tento mostrar o que faço. Muitos que me discriminavam hoje vão à minha casa e dizem: “ah, eu não imaginava que fosse assim”. Isso é o chamado pré-conceito. Digo sempre: “você não me conhece, não sabe o que eu faço, nunca assistiu a um culto, então o que tem a falar”. Participe, vá ver e tire suas conclusões. Visitem um terreiro e faça o seu conceito.

O que a senhora aprendeu nesses 40 anos de candomblé?

Tudo. Eu poderia catar papel, morar debaixo de marquises, de pontes… Ser negro no Brasil ainda é muito complicado… Sou filha de mãe viúva, ela me criou com muitas dificuldades, a gente nunca teve dinheiro pra nada. Nunca vivi do candomblé porque meu trabalho não está pautado em dinheiro. Então, eu sinto que o candomblé me deu tudo… Tenho o respeito das pessoas, tenho dignidade. Não tenho curso superior, não pertenço à academia, participo de palestras e converso com mestres, doutores, não só aqui em Londrina como país afora.

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Dignidade!

Ah, sim! Eu nunca menti, nunca deixei de assumir minha religião para poder entrar nos lugares. Todos sabem que sou uma Yalorixá e que, portanto, tenho que ser respeitada como sou: uma sacerdotisa. Faço parte de um clero, que é uma palavra que pode ser usada por todas as religiões, mas que a igreja católica se apossou.

O Brasil não tem o hábito de discutir a cultura afro. Por quê?

Não é interessante, né?

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Isso é uma ironia, Dona Vilma?

Sim. Porque para discutir esse assunto as pessoas teriam que cair na real. E a realidade do branco brasileiro, eu diria, passa pela África e não seria interessante para muitos se deparar com isso. Então acham melhor não mexer com isso. Hoje temos a lei número 10.639 que começa a exigir que o professor se capacite a ensinar a história do negro nas escolas. Por quê hoje? Porque as pessoas estão começando a perceber que não dá mais para esconder essa realidade.

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SERVIÇO

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VILMA – de todos os SANTOS, show com Vilma Santos. Músicos: Marco Scolari (acordeon, violão e direção artística), Bernardo Pellegrini (violão e voz), Ricardo Penha (contrabaixo), Marcelo Siqueira, Vlad e Vítor Jubiabá (percussão). Participação especial de Braga.

DIAS E LOCAIS: Concha Acústica (dia 21, às 18h30), Teatro Zaqueu de Melo (dia 23, às 21 horas); Calçadão (dia 29, às 10h30). Dezembro: dia 14 na festa Quizomba, em horário e local a serem definidos.

REPERTÓRIO

Abertura: Na cadência do samba/Que bonito é (Luís Bandeira)/ Canto das três raças (Mauro Duarte/ Paulo Pinheiro). Pé na Cozinha: Yaô (Pixinguinha)/ Batuque na cozinha (João da Baiana)/ Vatapá (Dorival Caymmi)/ Samba da piedade (Ary Barroso). Orelha no rádio: Louco (Wilson Batista)/ Se acaso você Chegasse (Lupicínio Rodrigues/ Felisberto Martins)/ O neguinho e a senhorita (Noel Rosa / Abelardo Silva)/ O mestre-sala dos mares (João Bosco/ Aldir Blanc)/ Nostalgia (Nelson Pascoal). Axé dos Ancestrais: Semba dos ancestrais (Rosinha Valença/ Martinho da Vila)/ Aquarela brasileira (Silas de Oliveira)/ Samba de roda (domínio público).
OBS: roteiro sujeito a acréscimos de músicas.