“Ah, minha Eurídice, meu verso, meu silêncio, minha música! / Nunca fujas de mim! Sem ti sou nada/ Sou coisa sem razão, jogada, sou pedra rolada”
(Fragmento de Monólogo de Orfeu, Vinicius de Moraes)
Dez segundos de melancólicas notas extraídas do violão; uma desvairada batucada toma conta do mais. Na seqüência, uma voz aveludada canta que a felicidade do pobre parece a grande ilusão do carnaval. Corte.
Nova batucada, apito de bonde, percussão reproduzir o barulho da máquina nos trilhos. Genial. Uma bela mulata passa em meio ao furdunço, esbarra em alguém, pede desculpas, ouve galanteios e gente chamando a atenção aos seus produtos: cebolas, colares. O frevo metaliza a multidão.
A inserção de falas está nas primeiras faixas da trilha sonora de “Black Orpheus” (Universal Music) relançada quase 50 anos depois de ter arrebatado multidões mundo afora.
O filme, dirigido pelo francês Marcel Camus,é baseado na peça “Orfeu da Conceição”, em que Vinicius de Moraes faz a transposição do mito grego de Orfeu e sua amada Eurídice aos morros cariocas. No Brasil recebeu o título “Orfeu do carnaval”.
O disco marca o início da eterna parceria de Vinicius, então na carreira diplomática, com o jovem pianista da noite carioca Antonio Carlos Brasileiro de Almeida Jobim, o Tom.
A trilha sonora de “Black Orpheus” chega ao público brasileiro na íntegra e em versão digitalizada. Ou seja, temas incluídos no filme foram editados, alguns em junho de 2008.
É o caso de “O nosso amor” (Tom-Vinicius) agora com exatos 14´56 minutos e uma curiosidade: nos créditos constam coro, bateria de escola de samba e, vejam bem, “provavelmente” Raul de Barros no trombone.
O trombonista “provavelmente” também acompanha, na mesma música, o canto de Vanja Orico, subtraído da trilha original do filme. A edição completa traz Luiz Bonfá aparece solando “Manhã de carnaval” (em parceria com Antônio Maria) e “Samba de Orfeu”.
“Pontos de macumba” reaparece com 13 minutos de duração e muitos atabaques e gritos de seguidores, em transe, de religiões afro-brasileiras.
Seria João Gilberto? – No disco há variações de muitos temas. “A felicidade”, defendida com competência por Agostinho Santos, tem ao violão, conforme informação dos créditos, João Gilberto ou Roberto Menescal.
“Poderia ser eu… ou o João”, despista Menescal no encarte consistente assinado por Anais Fléchet, Doutora em História. Na faixa 16 é ele sim. Já na faixa 11, o canto contido de Agostinho dos Santos parece estar sob severo crivo harmônico. Se é João ninguém sabe, ninguém viu e fica um elemento mais a adensar o mito, que foi desartado por Marcel Camus por ser “branco” demais na voz. Ah…
Elizeth Cardoso em “Manhã de carnaval”! Divina!! Estrela máxima da canção do amor maior.Ela, aliás, é a “voz cantada “de Eurídice enquanto Agostinho dos Santos a de Orfeu, interpretados no filme, respectivamente, por Marpessa Dawn e Breno Mello.
A trilha sonora de “Orfeu do carnaval” ou “Black Orpheus” ou “Orpheé Noir” ou ainda “Orfeo negro” – a produção é franco-ítalo-brasileira – foi dirigida por Tom Jobim e gravada no Rio de Janeiro e em São Paulo, entre 1958 e 1959.
Marcel Camus agiu com mão de ferro até, digamos assim, no modo particular de entender música brasileira. Talvez por isso certos batuques das escolas de sambas mais proeminentes da época (Portela, Salgueiro, Mangueira e Unidos da Capela) encontrem conivências de ouvidos estrangeiros.
Tom ficou uma arara com as modificações de melodias e letras impostas pelo diretor e não economizou tintas ao criticá-lo em carta a Vinicius de Moraes, que atuava na embaixada da Colômbia.
Camus, conforme relato da historiadora Anais Fléchet, não hesitou um tiquinho assim ao apelar à “concorrência” e pedir para Luiz Bonfá e Antônio Maria escreverem a canção de Orfeu, “Manhã de carnaval”.
Tudo acabou em clássicos. A trilha sonora de “Black Orpheus” foi o ponto de partida para a expansão da música brasileira no exterior, em especial a Bossa Nova, no início da década de 60. Quem nunca ouviu falar do histórico concerto no Carnegie Hall, em Nova York, em novembro 1962?
Precisa dizer mais nada não, né?
“Ignorância condescendente” – A idéia de reler o mito de Orfeu e Eurídice – o amor incondicional – rondava a cabeça de Vinicius de Moraes desde 1942. Em vez de lira, o músico da Trácia toca violão, mora no morro é condutor de bonde e sambista. Negro, belo, encantador. Eurídice, dentes alvos, mulata mais bela ainda não se avistou.
Vinicius deu à peça o título “Orfeu da Conceição”, a conselho do amigo e poeta João Cabral de Melo Neto, que ainda o recomendou inscrever o texto no concurso de teatro do IV Centenário de São Paulo. Premiação garantida.
Ainda em função diplomática, desta vez na França, o futuro poetinha – que mandaria a diplomacia aos ares em 1960 – conheceu o produtor Sacha Gordine que vislumbrou a possibilidade de Orfeu ganhar as telas.
Havia, no entanto, obstáculos: o preconceito de parte da elite brasileira e a “ignorância condescendente” do público europeu em relação ao Brasil.
Os dois vieram ao Brasil em busca de empresários bem dispostos. Conseguiram que um amigo de Vinicius patrocinasse… a peça, olha a ironia! No dia 25 de setembro de 1956, “Orfeu da Conceição” estreava no Theatro Municipal do Rio de Janeiro com atores do Teatro Experimental do Negro, criado por Abdias do Nascimento e dirigido por Leo Jusi.
Cenário concebido, olha só, por Oscar Niemeyer e os cartazes pela artista plástica Djanira. Em duas semanas, Tom e Vinicius criaram as músicas do espetáculo que, após dez dias em cartaz, foi remontado no Teatro da República com cenografia reduzida.
Enquanto isso, na França, o produtor Sacha Godine conseguiu a adesão do cineasta Marcel Camus. O filme começou a ser rodado em 1958, no Brasil, e a estréia oficial aconteceu, no ano seguinte, no Festival de Cannes onde conseguiu a Palma de Ouro. Em 1960, sob o nome de “Black Orpheus”, ganhou o Oscar de Melhor Estrangeiro.
Mesmo com tais prêmios, não faltaram críticas ao “exotismo carregado” de Camus, conforme narra a historiadora Anais Fléchet, como fizeram Jean-Luc Godard e Glauber Rocha.
No entanto, Orfeu sem Eurídice… A história conta e reconta cada vez melhor!
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