Dorival compôs “Acalanto” para Nana ninar. Stella Maris a ninava cantando essa e outros clássicos da música brasileira. Certa vez a mãe deixou a menina no colo de uma amiga, que cantou uma canção do “repertório” de dormir. Desafinou. A menina caiu no choro.
Pai e mãe passaram o fato pra frente. Virou lenda familiar e a filha a mais exigente e sofisticada intérprete brasileira. Como tal, Nana Caymmi retorna aos discos depois de perder as duas principais referências: o pai, Dorival, aos 94 anos, e a mãe, Stella, aos 86 anos, em agosto do ano passado, num intervalo de 11 dias.
A eles, Nana dedica “Sem poupar coração”, 29º disco em 49 anos de carreira. Sai pela Som Livre. Assim escreveu ela: “Papai e mamãe, cantei pra vocês. Com muita saudade, sua filha”. O álbum contém músicas inéditas – o primeiro desde 2001 – intercaladas com regravações que tratam sob o tema que Nana se dedica com empenho: o amor e seus vieses.
“Sem poupar coração” traz 14 faixas em que prevalecem boleros, canções aboleradas e sambas-canções. Nana não abre mão do estilo a despeito de alguns que atribuem a ela uma possível mesmice. Pobre de quem assim pensa. A voz da intérprete busca o que muitos não querem ou não podem por limitações: harmonias meticulosamente construídas.
O canto raro de Nana envolve frases – melódicas, inclusive – até dilatá-las do jeito almejado. Entre camadas espessas, Nana abre um pouco a retaguarda para reeditar o dueto com Erasmo Carlos na comovente “Não se esqueça de mim” (Roberto e Erasmo Carlos) – o primeiro encontro foi em 1998, no antológico “Resposta ao tempo”.
A nova versão embala o casal central de “Caminho das Índias”, novela de Glória Peres. Aliás, foi a teledramaturga, amiga há tempos da cantora, a responsável direta pela volta de Nana aos estúdios. “A Glória depositou toda a confiança em mim e pediu para gravar essa canção”, conta.
Com isso, dissolveu-se – ao menos momentaneamente – a vontade de Nana para de cantar. Ela ainda insiste em dizer que pretende deixar o ofício em breve e, quando em vez, fazer raras aparições. “Vou cantar mais um pouco e depois paro. Não quero ficar velhinha e me expondo cansada e fazendo malas para viajar”, afirma.
Em “Sem poupar corações”, Nana Caymmi solta a voz de emissão significativa em canções de autores consagrados e outros contemporâneos. Dos novos, garimpou “Visão” feita por Danilo Caymmi com ocantor e compositor paulistano Manu Lafer – melodia intrincada com versos corrosivos. De Márcio Ramos, veio a também inédita “Dúvida”.
Clássica e avassaladora – Em família, Nana apresenta a sobrinha Alice, filha de Danilo, como compositora no maracatu “Diamante rubi” e sua brasilidade explícita. Do irmão Dori – que assina os arranjos com Cristóvão Bastos e Itamar Assiere – veio a releitura da parceria rara instaurada com Chico Buarque, “Fora de hora”. Dori comparece também com Paulo César Pinheiro, na abolerada canção-título.
Fátima Guedes cedeu a confessional “Pra quem ama demais”, uma das tônicas do disco com acentuado piano. Duas reinterpretações afetivas: se há referências implícitas a Caymmi na singela “Caju em flor” (João Donato- Ronaldo Bastos), há muito de Stella Maris na cromática “Senhorinha” (Guinga-Paulo César Pinheiro), uma das músicas preferidas da mãe da cantora. Comoventes.
Autora recorrente no repertório de Nana, Sueli Costa mais Paulo César Pinheiro aparecem em “Violão”, com direito a dois violões (um de sete cordas) e comentários de bandolim. Se é para deixar clara a predileção por boleros, eis “Contradições” (Cristóvão Bastos – Aldir Blanc), relida antes por Altemar Dutra Júnior.
Nana Caymmi, 68 anos, faz questão de salvaguardar seu estilo. A voz redesenha regravações e dá sentido permanente às canções inéditas, eis o diferencial que poucos se dão ao prazer de compreender. Nana permanece clássica no estofo das canções, mas é avassaladora ao interpretar obras que contenham nuances improváveis. Nana é imensa!
O que não pode acontecer é essa senhora cantora parar de cantar, por melhores que sejam os argumentos apresentados. Ei Nana, não se esqueça de nós! Cante sempre, por favor!
A seguir trechos da entrevista que Nana Caymmi concedeu ao blog Sintonia Musical.
Nana, todo mundo é ou tem que ser romântico?
Gente, não sou eu quem determina isso. Faz parte da vida. Uns são mais, outros são menos, uns rejeitam e outros acham que ser romântico é uma deficiência, uma fraqueza. Eu sou assim, quer dizer, eu canto o que me vem à cabeça. O que eu penso está nesse disco. Sempre esteve apesar de uns acharem mesmice tudo isso, mas eu penso dessa maneira e dessa maneira eu me exponho. Eu tenho quem faça música desse nível, né? O bom é que tenho Paulo César Pinheiro, Ronaldo Bastos, Fátima Guedes que acompanham essa linha de pensamento.
Eu nunca achei que você caiu na mesmice. Já te criticaram nesse sentido?
Olha, essa história de estar sempre com uma novidade dentro do seu cantar eu não acho uma política boa. Eu tenho um estilo e esse estilo eu vou morrer com ele. Quer dizer, eu sou uma pessoa que expõe o trabalho de outras pessoas, sou uma porta-voz.
Uma intérprete, uma grande intérprete por sinal…
Uma intérprete. Exatamente!
Alguma música em especial você fez questão de resgatar nesse disco?
Olha, quando um autor grava o que faz eu não dou a menor bola, entendeu? Só serve pra que eu aprenda. Geralmente o autor cantando não é lá uma grande coisa não. Os autores cantando se acham o máximo… (risos). Eu não discuto, não estou aqui pra criar polêmica. Meu trabalho não é resgatar, meu trabalho é imprimir meu estilo. A Sueli (Costa) cantou “Violão”, a Rosa (Passos) gravou “Esmeralda”. Aliás, Zeca (Campos), amigo meu que ajudou no repertório, de certa maneira, foi quem me apresentou essa canção da Rosa, que nunca mais me mandou música, nem sabia mais nada dela.
Olha só!
Gostei dessa música. Mas tem a música da minha sobrinha, Alice, que foi feita quando ela tinha 13, 14 anos e cantou num show e fui a primeira a gravar… São sementes que meu pai plantou! Nada mais justo, então, eu renascer dentro da minha família, ficar com meus sobrinhos. O Danilo tem duas filhas primorosas como compositoras e cantoras, a Juliana e Alice. Não estou preocupada em dar nova roupagem, sigo com meu estilo. E cantar como eu canto não tem. Ninguém tem meu timbre! E o meu forte está na interpretação.
Bethânia diz que você é rara!
Sou muito clássica, gosto e muito de cantar bonito, tirar uma sonoridade bonita. Minha voz é um instrumento. Fazer isso é muito comum para mim porque não forço a voz, me cuido.
Foi difícil a volta ao estúdio depois que Caymmi foi embora?
Não, não! Meus irmãos estavam comigo… José Milton, meu produtor executivo há 20 anos, Cristóvão Bastos, maestro e meu amigo, enfim estava muito bem amparada, aguentei a parada. E tem uma coisa: a Glória (Perez, novelista) depositando toda a confiança em mim porque quando ela abriu a novela precisou que eu estivesse presente para soltar o “Não se esqueça de mim”.
O disco anterior, “Quem inventou o amor”, foi dedicado ao seu pai. Deus o tenha em bom lugar. Como amo o que Caymmi fez. Como você enxerga as coisas sem ele?
Eu enxergo bem porque é pedir demais que uma pessoa fique para semente. Meu pai dizia sempre isso claramente. A gente vai embora mesmo! É uma realidade brutal, não há uma escola pra se aprender isso. A gente já nasce perdendo. O envelhecimento é terrível e você fica mais velho quando perde os pais. Fica meio que inútil diante da vida. Pensei: “eu não tenho a quem mostrar, não tenho a quem dizer o que faço”… Isso não foi só comigo não, a família toda desabou: meus irmãos, meus filhos, meus sobrinhos, os netos e bisnetos dos meus pais. Foi um Deus nos acuda!
Eu imagino…
Mas eles morreram com uma cabeça extremamente lúcida. Papai estava lúcido, ainda dava conselhos. Então, uma perda como essa não é uma coisa normal, não é fácil.
O que me preocupou um pouco, Nana, é que numa entrevista que fizemos você me disse que pararia de cantar depois que seu pai morresse. Não faça isso!
Eu vou fazer! Não tenho saco pra ficar cantando mais, viajando mais. O Brasil é muito grande e as pessoas sempre querem mais de você. Eu vou cantar mais um pouco e depois paro. Não quero ficar velhinha e me expondo e fazendo malas, cansada. Quero ficar de bobeira também. Eu trabalho há muitos anos. Tenho direito à aposentadoria (risos)
(risos) Tá certa, mas não pare de uma hora pra outra, por favor!
Eu estou deixando frutos. Eu vou continuar gravando algumas coisas e minha voz está aí e vou cantando. Não quero ficar como uma principiante. Ninguém vai me obrigar a fazer isso!
Que seja uma vida longa!
Ah, isso eu vou ter se eu parar de cantar. Enquanto eu estiver cantando não há cão que me segure.
Você ouve quem da nova geração?
Eu não ouço ninguém a não ser um ou outro que aparece na televisão. Não compro discos. Quando eu ganho, ótimo! Agora, por exemplo, estou com o disco do Mauro Senise tocando músicas de Dolores Duran. Quando me chegam discos às mãos eu ouço, me interesso. Mas não estou ouvindo ninguém em especial. Primeiro porque fiquei com meus pais; há muitos anos vinha acompanhando a doença do meu pai e então quase não me ocupava em ouvir nada. Eu assistia ao que ele gostava, que era “Caldeirão do Huck”, do Luciano Huck; mamãe queria novelas… Então eu ficava acompanhando a TV com o pessoal da enfermagem e com as pessoas da família.
E mesmo assim acabou saindo um disco de inéditas…
Eu venho garimpando esse repertório há mais ou menos um ano para fazer esse disco de inéditas. Eu tinha que centralizar no meu trabalho e não dos outros! Eu sabia apenas dos compositores. Recebi mais de cem discos.
Esse disco terá show? Como será daqui pra frente?
Estou esperando o Dori (Caymmi) chegar de Los Angeles e saber o que vou fazer. No momento eu tenho o aniversário do Roberto Carlos (50 anos de carreira do cantor e compositor). Estou no bolo das cantoras que vão cantar canções dele.
Em que o Roberto te pega, Nana?
Eu gosto dele. Desde o começo de carreira como “E que tudo mais vá pro inferno” até “Não se esqueça de mim”. Adoro Roberto, Erasmo, Wanderléa, sempre gostei da Jovem Guarda. Sou da geração da Jovem Guarda. Eu comecei na mesma época que eles.
Se bem me lembro causou um certo bochicho na imprensa quando você declarou que gostava de lambadas.
Eu gosto muito de lambadas. Gosto de dançar, assim como gosto de axé. Não vou sair cantando porque eu não sei. Mas daí eu gostar de uma coisa – como gosto de mambo, cha-cha-chá, merengue, rumba – e cantar há uma diferença enorme.
Poderia vir um terceiro disco de “Boleros”?
Tudo pode acontecer, mas no momento não estou pensando em nada não. Estou lançando um disco novo e não vou pensar no que vou fazer depois.
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