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NÓS, OS CABOCLOS!
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ISABELA SENATORE/DIVULGAÇÃO
A INTÉRPRETE PAULISTA ANA SALVAGNI LANÇA “ALMA CABOCLA”, BELO TRABALHO EM QUE RESGATA OBRAS DO MAESTRO E COMPOSITOR HEKEL TAVARES: “ELE FOI FUNDO NESSA TRILHA DOS CABOCLOS E DA VIDA DO HOMEM INTERIORANO”

Há um caboclo no interior de cada um de nós. Sim, há! E quando se manifesta ele dissipa embrutecimentos e espalha simplicidade, beleza, poesia, um jeito de entender melhor o sítio imenso que é o Brasil.

Daí a importância da cantora Ana Salvagni resgatar – e principalmente dar mais visibilidade – às obras de um homem que traduziu tão bem esses sentimentos: o maestro, arranjador, compositor e folclorista Hekel Tavares (1896 -1969).

A intérprete paulista adentrou nas obras do autor com tamanha sensibilidade no imprescindível “Alma cabocla”, disco patrocinado pela Petrobras e distribuído pela Tratore. É o terceiro trabalho de Ana. Que, a exemplo de seu homenageado, precisa chegar a muitos interiores – metaforicamente também.

O disco sai no ano em que se comemoram as quatro décadas de morte do alagoano Hekel Tavares, cuja obra é fortemente marcada por temas populares com contornos eruditos. Foi uma coincidência, afirma Ana Salvagni. Que seja. A importância de “Alma cabocla” está além de efemérides.

A pesquisa de Ana Salvagni começou em 2006. Ela debruçou-se em 70 das quase 150 peças (incluindo peças sinfônicas) deixadas pelo compositor. O cantor Roberto Vilmar foi quem gravou pela primeira vez as obras de Hekel Tavares: “E nada mais…” e “Vê, cada estrela é um passarinho”, em 1927. Das peças eruditas, destacam-se, entre outras, “Anhanguera”, Rapsódia para violoncelo e orquestra” e “Concerto para piano e orquestra em formas brasileiras” – essa última com forte sotaque de gêneros populares.

Para “Alma cabocla”, Ana deteve-se às canções populares. Selecionou 16 faixas e cercou-se de expressivos instrumentistas e/ou arranjadores como Paulo Freire, Toninho Ferragutti, Swami Jr., Paulo Braga, Nailor Proveta, Edmilson Capeluppi, além de participações especiais como Renato Braz e Filó Machado. A co-direção musical é assinada por Edson Alves. O repertório é composto por canções das décadas de 20, 30 e 40.

Soprano e formada em Regência pela Unicamp, Ana centra seu canto de delicada emissão nas regiões graves e médias. A sonoridade de “Alma cabocla” é atual, mas em nenhum momento resvala em exaltações “moderninhas”.

A essência da obra de Hekel revela-se em interpretações seguras tanto vocal quanto instrumental. Ana e músicos, isso sim, buscam timbragens que evidenciam nuances eruditas em peças populares.

É o caso de “Você” (popularizada como “Penas do tiê”, 1928) que ganhou quarteto de cordas ou “Leilão (1930)” em que o piano de Paulo Braga explora habilmente a intrincada melodia. O resgate da artista inclui singelezas como “Lavandeirinha” (1930) em que Renato Braz dá o tom devocional nas vocalises, principalmente na citação de “Bendito”, peça de domínio público da Zona da Mata, Minas Gerais. O contraponto “urbano” encontra-se no canto viril de Filó Machado em “Favela” (1930). Fantástico!

“Alma cabocla” ilumina principalmente canções não incluídas no imaginário popular. O côco “Bia tá tá” (1934) abre o disco com o acordeom de Toninho Ferragutti fazendo a festa, que continua em “Engenho novo”(1929). A alma do disco reside também em desmandos do amor e dor vividas por Zé Gazela, o maior cantadô, ao encontrar siá Rita e Mané Sinhô em sua “Casa de caboclo”(1928).

ISABELA SENATORE/DIVULGAÇÃO
ANA AFIRMA QUE POR COINCIDÊNCIA O PROJETO ESTÁ SAINDO NO ANO EM QUE SE COMEMORA OS 40 ANOS DE MORTE DO COMPOSITOR ALAGOANO, QUE TRANSITAVA ENTRE O POPULAR E ERUDITO: “ ME ATRAI MUITO É A FORMA COM QUE O HEKEL CONSTRUÍA AS CANÇÕES”

Canções mais conhecidas como “Guacyra”(1930) e “Sussuarana” (1927), regravadas recentemente por Maria Bethânia, poderiam até soar como, digamos, respiradouros. Aí é que está: a inteligência musical do projeto não deixa nenhuma faixa escapar da apreciação do ouvinte, fato recorrente em alguns tributos em que harmonizações burocratas e/ou canto sem empenho prevalecem sobre a emoção. Ana eriça pelos em “Acalanto”(1930) e explode em felicidade em “Côcos “(1929).

Ana Salvagni resgata não apenas Hekel Tavares, mas também um Brasil tão rico e sábio que é bem capaz de mexer com os sentimentos até de quem se esquiva das próprias caboclices. “Alma cabocla” é para todos. Indistintamente!

A seguir, trechos da entrevista que Ana Salvagni concedeu ao blog Sintonia Musical.

Você escolheu obras do Hekel em função dos 40 anos de morte dele ou o projeto já estava assentado?

Eu não estava pensando nessa história do aniversário de morte dele até porque eu pensei que o disco fosse ficar pronto antes de 2009. Foi coincidência. Eu realmente tive a idéia de fazer esse trabalho porque gostava de algumas músicas do Hekel Tavares e tive vontade de conhecer outras. O acesso a essas outras músicas era difícil e isso a me instigou ainda mais a trazê-las para um registro atual. Coincidiu de ficar tudo pronto nesse ano.

Ana, onde reside a alma cabocla do Brasil?

Olha, eu tenho a impressão que ela está sendo resgatada aos poucos porque mais cedo ou mais tarde a gente acaba se voltando para o lado mais simples da vida. Eu acredito que isso vai ser um movimento de voltar para esse lado mais tranqüilo senão a gente acaba ficando louco, né?

Seria, digamos assim, uma volta ao tempo da ingenuidade?

É, acho que sim… Acho difícil recuperar porque tudo mudou muito, mas acho que tem como a gente simplificar e sair um pouco desse aparato técnico e tecnológico. Não digo abandonar, mas conciliar, equilibrar melhor as coisas.

Seus discos estão dentro desse Brasil mais rural, singelo, brejeiro. Estou errado?

Não, está certo. Mas quero dizer que não é uma coisa muito consciente para mim. Não é uma coisa: “ah, vou fazer isso”. É algo que acontece naturalmente. Quando olho para o que gravei eu constato que tem muita coisa do Brasil rural, delicado, brejeiro, mais singelo. Eu me identifico com isso.

Reprodução
“ALMA CABOCLA” FAZ UM EXCELENTE APANHADO DAS OBRAS DE HEKEL TAVARES FEITAS NAS DÉCADAS DE 20, 30 E 40: SONORIDADE ELABORADA COM O AUXÍLIO DE EXPRESSIVOS INSTRUMENISTAS

Quem você quer que a ouça, Ana? Qual seu público?

Eu não penso nisso, Antônio. Para mim funciona assim: eu começo a me apaixonar por um tipo de som e vou atrás e faço. Não é nada premeditado, eu vou pelo o que estou sentindo. Claro que existe uma preocupação de o trabalho chegar às pessoas. E é muito bom cada vez que alguém me dá um retorno. Isso é super gratificante. Sei que não é aquele “boom”, que estoura. Ao mesmo tempo sei que é um trabalho para uma vida longa, que é uma coisa de momento, de modismo.

Em que a música do Hekel Tavares te pega?

O que me atrai muito é a forma com que ele construía as canções. As melodias simples, bonitas e os temas que ele escolhia musicar. Ele também mergulhou fundo nessa trilha dos caboclos, da vida do homem mais do interior e conseguia valorizar os textos de uma forma muito bonita com as músicas.

Alberto, filho do Hekel, apoiou muito a feitura do disco, né?

Ele deu bastante atenção a esse trabalho, acompanhou todo o tempo o que estava acontecendo. E tem dado uma força na divulgação. Ele ficou contente com o resultado do disco e me disse que se o Hekel estivesse vivo com certeza teria gostado muito do modo como fiz esse disco. Essa foi uma das melhores respostas para mim.

E que resposta!Você mexe com a palavra cantada e escrita. Tem também um livro de poemas, “Janela sem tranca”. Escrever é tão bom quanto cantar?

Cantar para mim é o que está mais presente, mais à tona. Há momentos em que escrevo e eu gosto muito, mas não é uma coisa que faz parte do meu dia a dia. Porém, cantar é mais forte para mim.

Se fosse para pensar num outro projeto especial qual seria o autor?

Tenho ouvido bastante as músicas do Luiz Tatit. Gosto muito dele. Tenho ouvido também muitas coisas variadas. Tenho a impressão de que repertório da minha próxima empreitada será para algo mais atual. Até para dar uma equilibrada porque tenho muito essa coisa de gravar coisa antiga ou de tradição oral ou mesmo de compositores antigos. Estou começando esse movimento contrário de dizer mais as coisas de agora.

ISABELA SENATORE/DIVULGAÇÃO
“TENHO A IMPRESSÃO QUE A ALMA CABOCLA ESTÁ SENDO RESGATADA AOS POUCOS PORQUE MAIS CEDO OU MAIS TARDE A GENTE ACABA SE VOLTANDO PARA ESSE LADO MAIS SIMPLES DA VIDA”, AFIRMA A ARTISTA

REPERTÓRIO

Divulgação
HEKEL TAVARES: MAESTRO E COMPOSITOR TRADUZIU COMO POUCOS A ALMA INTERIORANA

1. Biá tá tá (Hekel Tavares/Jorge D´Altavilla)

2. Dedo mindinho (Hekel Tavares/Luiz Peixoto)

3. Sussuarana (Hekel Tavares/Luiz Peixoto)

4. Você (Hekel Tavares/Nair Mesquita)

5. Côcos (Hekel Tavares/Olegário Mariano)

6. Lavandeirinha (Hekel Tavares/Olegário Mariano)

7. Leilão (Hekel Tavares/Joracy Camargo)

8. Guacyra (Hekel Tavares/Joracy Camargo)

9. Engenho novo (Hekel Tavares)

10. Favela (Hekel Tavares/Joracy Camargo)

11. Casa de caboclo (Hekel Tavares/Luiz Peixoto)

12. “Eu vi…” (Hekel Tavares)

13. Era aquilo só (Hekel Tavares/Luiz Peixoto)

14. Moleque namorador (Hekel Tavares)

15. Caboclo bom (Hekel Tavares/Raul Pederneiras)

16. Acalanto (Hekel Tavares/Joracy Camargo)

Mais informações sobre a artista no site
www.anasalvagni.com.br

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