Não havia dormido direito por conta da ansiedade. É que naquele 19 de janeiro de 1982 sairia o resultado do vestibular. Acordei com minha mãe me chamando para almoçar. Antes da primeira garfada, um plantão da Globo dava detalhes de como seria o funeral de Elis Regina. “Elis morreu?”, nos perguntamos.
Sobrou comida nos pratos naquele almoço. O silêncio e a indignação de meu pai e minha mãe. Overdose de cocaína e álcool, dizia o repórter. Cocaína era muito forte para uma cidade do interior com seus pouco mais de 10 mil habitantes. Meus pais lamentaram muito e foram dar aulas. A vida precisava ser ensinada.
Tinha eu 17 anos. Lastimei ouvindo dois discos. Um compacto duplo com “Dois pra lá, dois pra cá”, “Mestre sala dos mares” (lado A, ambas de João Bosco e Aldir Blanc); ”Amor até o fim” (Gilberto Gil) e “Na batucada da vida” (Ary Barroso- Luiz Peixoto) – o lado que mais gostava. “Essa mulher”, de 1979, também entrou na roda. Demoravam os discos de Elis para chegar em Tupi Paulista. Dona Clarice da Pop,às vezes, me ouvia e colocava na banca um ou outro disco do primeiro escalão da MPB. Havia um comprador, ao menos.
Cinco horas da tarde, telefonei para a Universidade Estadual de Londrina. Havia passado em Comunicação Social – antes era assim, a partir do quinto período optava-se por Jornalismo ou Relações Públicas. Sou jornalista graduado, a despeito do ministro criador de jagunços e do faraós embalsamados.
Elis Regina. Nunca tive o privilégio de vê-la ao vivo e em cores. Tenho todos os discos – ouço sempre o lado B: “Valsa rancho” (Chico Buarque- Francis Hime), “Bolero de satã” (Guinga – Paulo César Pinheiro),” Ou Bola ou búlica”, “Violeta de Belford Roxo” (ambas de (João Bosco-Aldir Blanc), “Meio termo” (Lourenço Baeta – Cacaso). Algumas mais. “Noves fora”(Fagner – Belchior), que eu adoro porque “já rezei pro meu santo, na serra do Canindé, que me dê um homem grande”. Há sempre uma intenção nova no cantar dessa mulher. “Ela”, o álbum “pop”. Maravilha!
Lado A. Cansei de ir a shows tributos. Insistem nas mesmas teclas e cordas. Há boas vontades, mas tudo é cover ou fake. Se mocinhas cantantes e seus músicos amestrados não fizerem algo diferenciado no palco tudo torna-se caça-níquel – “Como nossos pais” (Belchior), por exemplo, é linda, mas deu o que tinha que dar. “O bêbado e o equilibrista” (João Bosco – Aldir Blanc) – sim, eu sei do contexto histórico – é só para aquela parcelinha que diz “amar” Elis cantando essa música. Pobres.
Os fatos: há 28 anos Elis Regina morria. No dia 17 de março deste ano faria 65 anos. Muitos já falaram dela. Escreveram maravilhas merecidas. Incríveis! Eu entendo Elis pela voz. Inclusive pela voz dos grandes. Zeca Correa Leite, meu queridíssimo amigo e jornalista, certo dia me mostrou uma fita cassete com a gravação do show “Falso Brilhante”. Feita em Curitiba. Áudio não é dos melhores – parece que o gravador foi colocado rente ao palco. Elis cantava “Glória, glória, aleluia” no ato, na redenção. Fiquei abismado diante da grandeza. Zeca me explicou o porquê. Preciosidade.
Ele lembra de uma entrevista feita no dia 13 de setembro de 1981. Curitiba, turnê de “Trem Azul”. A conversa ia animada, mas Elis precisava se trocar para entrar em cena. Disse que voltaria outra vez a Curitiba pra conversar mais e tomar cerveja na periferia, “em copo americano”. “Quando ela morreu chorei muito e disse que o convite para a cerveja iria continuar”, diz o jornalista.
Outra voz tamanha é de Marta Santos, há mais 40 anos a grande cantora de música de qualidade em Londrina – faz falta nos parcos palcos locais. Ela foi apresentada a Elis por Lena Mariano (radicada nos EUA atualmente), irmã de César Camargo Mariano. Lena e Marta chegaram a cantar juntas no folclórico bar “Cantinho”. Aliás, a família Santos é composta por músicos fantásticos: a também cantora Márcia e o violonista e arranjador Marcos Santos
A primeira vez que Marta e Elis se conversaram foi durante a apresentação do show “Essa mulher”, em Londrina, no extinto e boêmio bar “Sereno”. O derradeiro encontro, na turnê “Trem azul”, aconteceu num restaurante oriental. Conversaram sobre música e filhos.
“Na primeira vez, Elis me passou uma impressão de mulher muito segura. Na outra, dizia estar cansada. Inconformada, desgostosa mesmo. Bebeu muito naquele dia.”, diz. “Mas sempre me lembrarei dela como uma artista autêntica. Tão autêntica que não conseguiram “fabricar” ninguém parecida”, complementa. Qual música a cantora londrinense mais gosta? “Dá o tom, o nome da música e o primeiro acorde que a letra vem”.
Elis tinha Ângela Maria como referência maior. Amava a Sapoti de amor maior. Fafá dedicou terceiro disco à Ângela e Elis por serem suas referências maiores. Elis reverbera em tom maior em Leila Pinheiro. Rosinha Passos diz pra o mundo inteiro – literalmente – que Elis é a maior cantora do Brasil. Elis está em muitas.
Elis se dizia a maior cantora de sua época. Quando insegura, alternava Gal ou Bethânia em segundo lugar. Foi a maior. É uma das maiores do mundo. Ia atrás de gente nova e boa. Sabia sacar o que de bom havia. Milton e Gil e Bosco e Blanc os preferidos. Jobim-açu não conta porque depois do que “fizeram” juntos, num disco, só por Deus. O legado musical é irrepreensível. A voz, a extensão, a inflexão. Tudo nela é superior.
Elis dura. Ainda bem!
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Espaço aberto
* Alguém tem alguma história (conversa, encontro, música, disco, show) relacionada a Elis Regina para contar?
* Na sua opinião, qual compositor da geração atual Elis teria gravado se estivesse viva? Você conseguiria fazer uma pequena relação de canções que gostaria de ouvir na voz dela?
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