Aos mais íntimos, Macao. O tratamento carinhoso abriga onze faixas do novo disco de Jards Macalé, que entrou no estúdio da gravadora Biscoito Fino para registrar canções afeitas às suas inquietudes e vontades. “Macao” não se afirma em conceitos ou temas interligados, mas nas vibrações idiossincráticas de Macalé.
Décimo disco-solo do cantor, compositor e instrumentista carioca, “Macao” soaria apenas em voz e violão. A dobradinha aparece em quatro canções: “Farinha do desprezo” (com quatro violões sobrepostos; composta com Capinan e registrada em 1973, no primeiro disco de Macalé), “Um favor” (releitura contemplativa do clássico de Lupicinio Rodrigues), “Corcovado” (emblemática canção de Jobim traçada para reverenciar Johnny Alf e “a cidade de São Paulo”…conexões macaleneana) e “Só assumo só” (Luiz Melodia).
As demais canções receberam acréscimos instrumentais do maestro e pianista Cristóvão Bastos,líder de um time de músicos excepcionais. São eles: João Lyra (violão), Dirceu Leite (flauta e clarinete), Jurim Moreira e Carlos Balla (bateria), Rômulo Gomes (baixo), Ricardo Pontes (saxofone), Alceu Maia (cavaquinho), Ovídio Britto e Don Chacal (percussão).
“Macao” contém canções próprias – primordiais -e de autores com timbragem distintas e nominados (Paulo Vanzolini, Jacques Brel, Tom Jobim, Melodia) ou subliminarmente evocados como Paulinho da viola na inédita e dolente “ Engenho de dentro” (Macalé e Abel Silva). “Se você quiser” (maxixe composto com Xico Chaves) e “Balada (dueto com a parceira de Ana de Hollanda) são temas da nova safra.
Junção de tradições e experimentalismos harmônicos, “Macao” contém gratas surpresas. “Boneca semiótica” reaparece com mínimas intervenções eletrônicas feitas pelo grupo Laptop&Violão. Registrada oficialmente em 1975, a canção de Macalé, Rogério Duarte, Chacal e Duda tem a orquestração de Wagner Tisa sampleada.
Refeita, “The archaic lonely star blues” (dele e Duda) distancia-se da de Gal Costa no antológico “Le- gal” (1970). Boa sacada de Jards Anet da Silva, 65 anos, carioca da Tijuca, que “desencantou” e gravou “Ne me quitte pas” (Jacques Brel), só ao piano.
Wally Salomão, parceiro mais constante, não está em “Macao”; ficou eternizado para sempre no álbum anterior, “Real grandeza” (2005). Jards Macalé (apelido tascado por amigos de infância, numa referência a um dos piores jogadores do Botafogo) também para sempre estará associado a canções gravadas por Gal Costa (“Vapor barato), Maria Bethânia (“Movimento dos Barcos”), Nara leão (“Amo tanto”) , Clara Nunes (“O mais que perfeito”), além dos arranjos e direção musical de “Transa” (1972, Caetano Veloso).
Na nova geração, Macalé estabeleceu empatia com Margareth Menezes (‘Negra melodia”), Belô Veloso (“Hotel das estrelas”), Adriana Calcanhotto( “Anjo exterminado”) e, por que não, na banda Camisa de Vênus (ainda existe?) em “Gotham city” (com Capinan ), alvo de uníssona vaia durante a participação no IV Festival Internacional da Canção, em 1969. De lá saiu com a pecha de “maldito” por não se adequar às normas vigentes das gravadoras.
Bendito Macao que mais uma vez comprova ser um artista atemporal. A seguir, um rápido bate-papo com Jards Macalé.
Fiquei instigado com a inclusão de “Ne me quitte pas” no repertório. De onde veio esse impulso?
Sempre gostei dessa música. Há muito tempo eu ouvi Maysa cantando e, mais recentemente, a gravação espetacular de Nina Simone. É linda! Quando fui a Barcelona, minha companheira, Ana de Hollanda, me pediu para trazer um disco de Jacques Brel (autor da música). Eu encontrei uma caixa belíssima de Jacques Brel e vim ouvindo. Pintou de novo na minha cabeça o “Ne me quitte pas”. Para esse disco eu tinha um roteiro com muitas músicas que gostaria de cantar, mas fui limpando, limpando e “Ne me quitte pas” foi ficando, ficando e até que ficou.
Olha só…
Aí eu disse: “agora vou desencantar mesmo”. E também foi uma forma de justificar meu nome, Jards Anet da Silva (risos)
Nessas “limpezas” o que ficou de fora?
“Estrupício”, do Itamar Assumpção, caberia, mas eu estava tão assoberbado para pegar o violão, estudar… Teria que parar e dar a atenção necessária a essa música, mas “Estrupício” entra no show e, daqui a pouco, vem à tona num próximo disco, quem sabe.
No encarte, você escreveu não temer o “pudor do ruído” assim como Baden Powell e Nelson Cavaquinho. Existem ruídos com aspas ou sem aspas nesse disco?
Sem aspas. O violão passa pela camisa e faze um “rec” ,o dedo passa por uma corda nova e faz um “shiii”, um ruidinho… Podíamos tirar isso , mas não quis. Por que sempre ficar com a coisa séptica se a gente pode ser normal? (risos)
Nesses tantos anos de carreira, você alguma vez se sentiu realmente deixado à margem ou sua carreira seguiu como tinha que ser?
As duas coisas. Em um momento eu fui marginalizado do processo e, ao mesmo tempo, dentro do universo artístico, eu tomei posições que não foram aceitas mesmo. Tudo bem, mas foram posições que eu tomei com consciência.
Por exemplo?
Com “Gotham City eu fui vaiado solenemente por todo o Maracanazinho, quer exemplo melhor que esse?
Nana Caymmi também foi vaiada ao interpretar “Saveiros”, em 1966, e hoje é uma das maiores, assim como você. Vai entender a “cultura” da vaia, né?
É, acho que o processo não devia ser assim, mas é…O fato é que é que amo a música, sou músico, tenho esse dom, e me divirto muito com isso. Sinto um prazer incomensurável ser músico e isso é o que me importa.
Você ainda defende a mudança do lema da bandeira brasileira para “Amor, ordem e progresso”?
Sim, claro, sempre. Se puserem o “amor”, quem sabe – quem sabe!- a geração que nascer sob a égide do amor talvez melhore as coisas. Minha parte até hoje faço. Meu lema, aliás o lema da minha geração, ainda é paz e amor.
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