Desembarco em Santo Amaro da Purificação – Bahia!!! – depois de quase uma hora de ônibus. Sol fortíssimo, calor de deixar marcas.
Naquela cidade, distante pouco mais de 70 quilômetros de Salvador, mora Roberto Mendes, cantor, compositor, pesquisador, um homem culto e proseador da melhor espécie. Tem humor de sobra também.
Ligo pra ele. Pede – há acolhimento na voz – pra eu esperar alguns minutos pois estava no arraial da Pedra, onde mantém uma casa espaçosa. Lá, Roberto Mendes compõe, estuda e decodifica, principalmente em música, a vida de sua gente tão morena.
É dele o livro “Chula – comportamento traduzido em canção”, em autoria com o jornalista Waldomiro Júnior. Subtítulo extenso: “A música raiz do Recôncavo baiano na formação da nacionalidade brasileira”.
Volume primoroso, anos de pesquisa, que promove a compreensão histórica – farta análise – e até técnicas por ele utilizada para se tocar a chula baiana. Ou o samba chula, ao ver dele, a origem de todos os estilos musicais brasileiros. “No Recôncavo, a chula é uma combustão espontânea”, diz o autor.
São dele e parceiros muitas canções que Maria Bethânia eterniza desde 1984 – depois de Chico Buarque e Caetano Veloso, Roberto é o autor mais recorrente na discografia da intérprete e conterrânea.
Aguardo Roberto chegar defronte à Igreja Nossa Senhora do Rosário. Olho o movimento da cidade, o jeito daquela gente se mover – um suingue compassado, o sotaque gostoso.
Toca o celular. É ele. Pergunta onde estou. Ora, perto da casa amarela defronte ao caixa eletrônico, conforme instrução. Errei de banco e de casa.
Caminho poucos metros e encontro aquele homem alto e falante que me recebe com um carinho raro nos dias de hoje. Põe a casa à disposição, almoço bom, conversa começando a fluir. Tudo acompanhado pelo filho Bebeto e agregados. Mais tarde conheço Lícia, sua esposa. Simpatia! Há bem querer naquela residência.
Falamos de música, artistas, pareceres. Eu, maravilhado diante da mais completa tradução de Santo Amaro da Purificação. Admirável o respeito das pessoas por ele.
A todos saúda: “meu filho, minha filha”. Roberto faz questão que eu conheça a cidade guardada com tanto zelo: “Nunca sai daqui”, diz com orgulho.
Caminhamos até o carro dele. Andamos para cá, para lá. Um homem – em átono grau etílico – o aborda e pede para que ele seja vereador. Hum! Roberto dá atenção, mas esquiva-se do assunto. De repente ele diz: “Me dá uma sacola sua pra eu levar e disfarçar porque não sei onde deixei o carro”. Rio muito.
Se Roberto discorre sobre assuntos diversos – com profundidade própria de um intelectual -, parece não se ater muito a espaços: em Salvador, onde a entrevista a seguir foi feita, ele conseguiu errar o shopping. Pois é…
Roberto Mendes – 56 anos, ex-professor de Matemática que deixou a razão brutal dos números para se dedicar à música; são nove discos, o mais recente “Cidade e rio” – é, sobretudo, um homem sem meias palavras.
Ele fala o que pensa, instiga o interlocutor à reflexão. Um homem importante para o Brasil – não o oficial, o real – que faz bom uso da herança e comportamento de sua cercania.
Vou começar discordando de você quando diz que ser um “copiador” de chula. Como assim?
Copiador porque quando se tem a oralidade, a convivência com pessoas que passam informações e contradizem o estudo formal que tive. A maneira como toco violão se contrapõe à maneira que o Zezinho da Viola toca, por exemplo. É uma outra postura. Eu fundi minha postura, quebrei a rigidez da minha razão em função do orgânico ao ver aquele cara sem estudo desenvolver uma técnica raríssima e bela com um instrumento.
Quer dizer, você partiu de uma vontade, passou para a observação e levou ao violão, é isso?
Sim, sim. Eu acho minha tradução – costumo dizer isso – muito pobre porque ficou muito sozinha. Seria necessário, para fazer uma avaliação dessa tradução, que outras pessoas também tivesse feito o que fiz, o que infelizmente não aconteceu na minha região. E quando você é o único que faz fica parecendo que você é o dono da situação. Isso é um perigo muito grande.
O Livro “Chula – comportamento traduzido em canção” pretende alcançar quem?
A idéia é basicamente alcançar a razão acadêmica, uma maneira de trazer a escola para a rua. Trazer a escola para entender a sua escola e não a escola importada fazendo a escola para alguém. Eu penso que educação nada mais é que levar elementos de outra cultura para uma cultura já existente. É fundir costumes de tribos.
Isso me parece uma tarefa inglória, não é não?
Eu acho que não. Repare bem: temos um país com várias encruzilhadas étnicas; um país formado por 220 povos. As pessoas não gostam que eu fale em raça única, mas o Brasil é uma raça especial, tem um conceito único de viver. Esse encontro de variantes lhe dá uma unidade chamada Brasil que poucos lugares do mundo têm. Há uma regência geral, um país de dimensão continental falando a mesma língua.
Você toca sempre na questão do Brasil clandestino, como é isso?
Esse foi criado pelo Brasil oficial, pelos imbecis que governam o País. Pela visão política, que é uma visão burra, de não entender que o Brasil é o maior país do mundo, até pela referência cultural. É tão burro o Brasil oficial que permite que entre o Brasil real e ele, o oficial, se crie o Brasil clandestino tão forte, ou melhor, mais forte e organizado que o Estado.
E qual seria a solução, Roberto?
Ah, valorizar o Brasil real.
O Brasil real primordialmente o quê, por exemplo?
Cultura! Cultura é regra de comportamento, é herança de costumes que define o comportamento de um povo. O Brasil é rico em herança de costumes, são 220 povos. Imagine que beleza: cada cidadão que pertence a uma tribo é uma variante dessa unidade.
Voltando ao livro. Porque a chula é um comportamento?
A chula é um comportamento traduzindo em canção como é a Bata do Feijão, Bata do milho, canto das lavadeiras… Enfim, são cantos, versos para animar o trabalho. São cantos de labor. A chula é confluência do sotaque das melodias da modinha portuguesa, a viola que vem da Ilha da Madeira e a sensibilidade dos sudaneses, que eram nobres e tinham noção de harmonia.
E a percussão?
A percussão vem dos bantus, de Angola. É a base do samba de caboclo, cabila, o cabula (faz percussão vocal). É uma coisa fora do chão, como se o chão tivesse muito quente.
Interessante o fato de que homem não dança, homem toca!
Homem toca. Mas tem um caso especial que homem dança. Todo o canto da chula é uma louvação à mulher, o canto é para enaltecer a beleza da mulher. E ela o homem devolve essa cortesia ao homem de uma maneira sensual. Não é sexual, é uma dança que provoca sensualidade tanto que se você vir uma senhora de 80 anos ou uma menina de 15 anos, ambas têm o mesmo movimento, a mesma maneira de seduzir.
Quais os tipos de chula?
Tem a chula corrida, que vira grande farra; a chula amarrada, tem a chula de estiva, tem o xaréu, que são as chulas praieiras e assim vai. O homem dança quando se trabalha, quando se faz a casa de taipa. Nesse samba, que se chama barravento, é deslumbrante porque nesse meio já aconteceram muitos casamentos. A mulher só faz cantar e dar o barro para o homem construir, fechar as casas e quanto mais dá o barro é uma maneira de dizer que está querendo se dar também. É sedução.
Roberto você mora no recôncavo, em Santo Amaro da Purificação…
(imediatamente responde) Só tive esse endereço, nunca morei em outro lugar.
Que tipo de música você gosta?
Eu gosto de música! Eu fui à música pela canção, não fui em busca de estilo, que é a morte de qualquer coisa.
É?
As palavras “estilo” e “gênero”… acho bobagens. Eu busquei na música uma outra razão. Quando perdi meu pai, aos 13 anos, era muito presente a ausência dele. Vim de uma família onde todos tocavam violão, de uma cidade que em 1826, pelo Código de Postura, uma família que tivesse dois ou três filhos um tinha que ser padre e outro podia ser músico. Tanto que o primeiro disco gravado no Brasil é de um santamarense, o Manoel Pedro dos Santos, o Baiano, pela Casas Edison, no Rio de Janeiro. A música é de Xisto Bahia, “Isto é bom”, um lundu.
Olha só!
Mas então, a música no meu caso veio para quebrar a rigidez da razão matemática. A razão da freqüência provoca mais simpatia que a razão matemática.
Sim, mas a música exige técnica, que exige matemática, cálculos…
Exige uma disciplina para se chegar à possibilidade de resolver uma simpatia dentro das freqüências provocadas por um som. Só!
Não fosse você ir até o pessoal que faz chula e apreender e preservar, ela provavelmente estaria fadada ao esquecimento, né?
É pena porque isso é função do Estado. Quem tem que cuidar da cultura de um povo é o Estado.
E você cobra isso das autoridades?
Eu cobro quando tenho chances de falar, como agora, que o poder público brasileiro é burro, inútil e incompetente e que favorece o Brasil clandestino como já dissemos.
Você não tem competência para se tornar um político?
Nenhuma porque não tenho competência para ser canalha. Culturalmente, não sou eu quem está dizendo isso, o mundo está dizendo isso: na classe política , a primeira coisa que tem que ser é canalha. (risos).
Seu humor é ácido!
(risos) É visão provinciana. O provinciano vê assim porque já tem televisão, internet, parabólica, já ouviu falar em banda larga…
Roberto, você é um intelectual.
(risos) Não sou! Sou provinciano. Sou um homem com pequenos costumes: não tenho um carro zero, não tenho uma grande casa… Eu moro numa cidade, não moro numa casa. Sou privilegiado nisso.
Achei interessante a abordagem daquele senhor em Santo Amaro que disse que você tem que ser vereador.
(risos) Sim, pra quê? Mas não tenho capacidade.
Você não interpretou como sendo um pedido de ajuda? Por inspirar confiança?
Acho que foi um pedido para me colocar no ridículo. Eu poderia dizer: você indique seu pai, sua mãe ou a pqp (risos). Isso é coisa que se proponha a alguém que quer morrer com dignidade no nome? Querer me envolver num meio desse é me chamar de ridículo.
(risos) Já que você partiu para a galhofa, qual a sua teoria do ridículo mesmo?
(risos) A teoria é a seguinte: o homem tem um prazo de morrer, tudo tem um prazo de acabar. E quando isso não acontece, o homem fica margeando, cotovelando o ridículo. Com o artista é pior. Ave Maria, com o artista é pior. O artista só perde para advogado, político e corretor de imóveis.
Mas você é um artista!
(risos) Sou um artista sim, mas eu me salvo porque eu moro na minha terra. E por isso mesmo não posso mentir porque todos lá conhecem meus segredos. Sou muito bem vigiado na minha cidade. Por isso digo que sou um copiador de qualidade.
Música orgânica. O que é pra você?
Ah, música orgânica pra mim é uma das coisas mais belas do mundo. Música orgânica é barulho naturalmente organizado. Se não tiver o naturalmente, vira ruído. E nada mais organizado que o barulho provocado pela chula. O homem só quer o silêncio para dormir, mas quando acorda ele quer pular da cama e falar qualquer coisa, com passarinho, mesmo que seja um processo lento. Mas o som tem que vir em forma de barulho natural.
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