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“Há almas que têm/ a mais louca alegria/ que é quase agonia/quase profissão”
(“Alma”, Sueli Costa – Abel Silva)
…………………….

Desfaz-se o silêncio de cinco anos. Do diafragma entumecido à emissão, Virgínia Rodrigues eleva a voz a Deus, deuses e mortais à volta de seu canto de matizes tantas e agora acondicionado em “Recomeço” (gravadora Biscoito Fino).

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Acompanhada apenas pelo piano de Cristóvão Bastos, a mezzo soprano baiana dispõe o canto quente num projeto que exalta o amor e seus contratempos.

Só uma intérprete de lâmina afiada consegue talhar releituras graças à compreensão de que seu canto, arregimentado pela técnica lírica, pode ressaltar nuances de obras populares.

Virgínia mais agrega do que promove margens comparativistas ao dar nutrientes necessários até mesmo a clássicos exauridos por cantares muito. É o caso, por exemplo, de “A noite do meu bem” (Dolores Duran).

O piano de Cristóvão Bastos – arranjador das 11 faixas – constrói harmonias elegantes, dignas de um recital. Sim, “Recomeço” é um disco recitativo.

Em boas mãos, Virgínia Rodrigues ocupa ambientes com seu timbre ao redesenhar, no tempo da delicadeza, canções aquietadas na memória popular: “Boa noite, amor” (José Maria de Abreu – Francisco Mattoso), “Canção do amor” (Elano de Paula-Chocolate), vibrações advindas de, respectivamente, Francisco Alves e Elizeth Cardoso. Ou mesmo “Eu te amo, amor” (Francis Hime – Vinicius de Moraes).

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Tom e Vinicius estão no repertório em dose dupla e bem servida: “Por toda a minha vida” e, meu Deus, “Estrada branca”. Eis a essência de “Recomeço”, o amor total e a aspereza do sentimento que move mundos e fundos.

A seleção contemporânea abarca “Alma” (Sueli Costa- Abel Silva), hit de Simone, “Todo o sentimento” (Cristóvão Bastos – Chico Buarque) e “Beatriz” (Edu Lobo-Chico Buarque) . Eis a assinatura de uma intérprete.

A reverência às divindades afros, recorrente em sua discografia, dessa vez vai para Nanã, senhora das profundas águas , fornecedora do barro com o qual se fez o homem. Está contida em “Porto de Araújo”, intrincada melodia de Guinga e versos do poeta Paulo César Pinheiro. Saluba, Nanã!

Se nos outros três discos – “Sol negro” (1997), “Nós” (2000) e Mares profundos (2003) – Virgínia Rodrigues mantinha forte sotaque afro-brasileiro, em “Recomeço” oferece seu canto à universalidade. O exterior a aclama; sabe aquela coisa do “deu no The New York Times”. Predicados e adjetivos. Então…

Bem fez Caetano Veloso ao descobri-la durante ensaio do Bando de Teatro Olodum, em 1997, e apadrinhá-la. Bem fez Maria Bethânia ao chamá-la para a primeira gravação (na faixa “Invocação”, de Chico César, no disco “Âmbar”, 1996).

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Bill Clinton, ex-presidente norte-americano, tornou-se admirador de marca maior desde quando a viu cantar, durante visita oficial ao Brasil, em 1997, e lhe dedicou linhas maiores em sua biografia “Minha vida”.

Sagrada, Virgínia Rodrigues canta para o reino anímico!

“Recomeço” é sentimental, romântico até, né?

Esse disco fala de amor, de alegria, de várias emoções. Minha intenção foi realçar a construção da melodia e da poesia através do piano e voz. A canção “Beatriz”, por exemplo, eu tomei a ousadia de gravar depois de Milton Nascimento e Monica Salmaso. É muita cara de pau de minha parte

(risos) Cara de pau é bom!

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Pois é, minha vontade de gravá-la ultrapassou tudo…

Virgínia, sua voz requer apuro auditivo, atenção do ouvinte. Quem te ouve? Que tipo de público você está formando ou já formou?

Olha, eu acredito que o meu show é para quem quer sentar e apreciar música boa. Não é para badalar, remexer o corpo, batucar na mesa. Ainda mais com o repertório desse disco que é para quem quer música para relaxar, para matar a saudade, ouvir tomando um vinho…

Para namorar…

Exatamente, serve para um monte de coisas boas.

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Você é uma cantora popular, mas tem técnica do canto lírico. Nunca lhe passou pela cabeça gravar um disco só com árias?

Já pensei sim! Minha formação musical vem também de coral de igreja onde aprendi várias árias, mas não levei adiante esse projeto. Pensei em cantar árias de óperas bem como fazer algo com o samba de roda da Bahia. Enfim, são projetos que ficam na cabeça e que com o tempo vão amadurecendo, como o “Recomeço”, só com voz e piano, que agora pude realizar.

Você falou da ligação musical através do canto coral em igrejas, mas religiosamente sua ligação maior é com o candomblé que é bonita e verdadeira!

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É verdadeira porque está no meu sangue, vem dos meus ancestrais. Eu nasci em Salvador, mas apesar de ser negra infelizmente – olha só, eu disse infelizmente – não fui criada num terreiro de candomblé. Minha formação religiosa familiar é católica apostólica romana. O candomblé entrou na minha vida quando eu já estava com 30 anos de idade.

Quais seus orixás?

Minha cabeça é de Ogum com Nanã e Iemanjá Ogunté, no ajuntó (alternância entre os segundo e terceiro orixás).

Você canta para Deus?

Eu canto para os deuses! A música é uma entidade. As pessoas pensam que não, mas quem tenta se sobrepor à música pode ser “derrubado”. A gente não tem poder sobre a música; ela nos dá o que quer. A música é um dos maiores bens que Deus e os deuses nos deram, é uma divindade. Se você acha que mandar nela, pode se enganar porque de repente ela pode não estar mais ao seu lado, já foi.

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Você já foi manicure, doméstica e agora vive de música. Ela lhe dá um sustento financeiro razoável? Está rica?

(risos) Estou rica de música, graças a Deus. A música me deu, claro, a oportunidade de viver daquilo que eu sempre gostei: cantar. Meu trabalho não é comercial para início de conversa. Vivemos num período de vulgarização, banalização, do descartável em que a música, de uma maneira geral, parece seringa de injeção: usa-se e joga fora. Hoje tudo pede resultados rápidos. Por outro lado, existem pessoas que não fazem um trabalho comercial, como eu, que acabam sendo penalizadas. Tenho 11 aos de carreira, não estou rica, mas a música permite que eu consiga me sustentar, comer, vestir, calçar, pagar minhas contas.

Você não teme, Virgínia, ser considerada uma cantora elitista?

Eu não sou uma cantora elitista! Quando a gente faz arte tem que pensar em nível de mundo… Olha esse papo de que suburbano não gosta de música boa é mentira! Isso foi uma forma que acharam para justificar a falta de investimento em arte para todos. Eu nasci e me criei no subúrbio, minha família é suburbana e eu freqüento o subúrbio porque minhas origens estão lá. As pessoas, muitas vezes, não vão a um show, por exemplo, do Caetano Veloso ou da Bethânia porque não têm grana.

Os ingressos dos seus shows são populares?

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Os ingressos dos meus shows não vãoa R$ 50, 00, eu acho. Eu nunca sei qual é o valor do ingresso, nunca pergunto.

É preço popular pra você?

Olha eu não acho que seja popular nem que seja caro. Na verdade, o povo brasileiro não tem dinheiro, entendeu? Minha sobrinha trabalha e pode tirar de vez quando R$ 50,00 para assistir a um show. Mas também conheço pessoas pobres que pagam o mesmo valor – e isso vai de gosto – para ver bandas de sucesso.

Você gosta da chamada axé music, que toca no carnaval?

Eu não escuto, apesar de gostar de algumas pessoas que fazem axé-music. Eu prefiro escutar um samba de roda, além de música popular brasileira de qualidade.

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O ex-presidente norte-americano Bill Clinton dedicou um capítulo a você na biografia dele. Que tal?

(risos) Pois é, eu fiquei surpresa. Eu estava em casa e uma amiga minha ligou do Rio de Janeiro – ela tinha acabado de comprar o livro em inglês – e me disse: “Virgínia, você está no livro do Bill Clinton”. Ela deu um grito que levei um susto e depois leu a página toda.

De manicure a uma diva…

É… Algumas pessoas me chama de diva. Não sou diva, sou uma cantora de musica popular brasileira e só.

Cantora não, intérprete, grande!

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Ah… obrigada.