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A vida de colunista de ga­­mes não é fácil. Se os leitores pensam que ficar sentado na frente da televisão jogando videogame, comendo jujuba e tomando vitamina não requer um alto grau de destreza, estão enganados. É preciso ter a programação das colunas com uns 45 dias de antecedência, seguir o calendário de lançamentos e fazer as reservas de pré-compra. O tempo é curto. Entre um lançamento e a publicação desta coluna se passam, no máximo, uns dez dias. Es­­ta rotina obscura por trás da labuta aparentemente divertida também esconde uma armadilha que cada vez mais incômoda a este colunista: ficar preso à pauta da grande indústria. Acaba sobrando a tarefa de dar notas a cada jogo que ganhe destaque, normalmente destaque conquistado com milhões de dólares em marketing.

Às vezes é preciso dar um tempo, romper com o óbvio e arriscar. Tentar ser mais útil ao leitor e trazer informações difíceis de serem encontradas. Aconteceu neste es­­paço com Flower e Limbo, jogos pe­­quenos que foram crescendo com o tempo e hoje são citados em todos os artigos como referência de “videogame-arte”. Aqui eles apareceram na semana seguinte de lançados. Um orgulho.

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E a rotina da pauta foi quebrada mais uma vez nesta semana. Uma crítica do roteirista Yuri Arara, traduzida pelo Kotaku Brasil, foi tão bem escrita citando elementos in­­sanos que o game descrito roubou a vez do “esperado” Dark Souls, que pode aparecer em colunas próximas. Uma mãe assassina que encarcera o filho num porão cheio de fezes, vermes e fetos mortos não pode passar batido. E de The Bin­­ding of Isaac não passou.

A trama central, como o próprio nome sugere, é baseada na passagem bíblica em que Abraão é instigado a sacrificar o filho Isaac em nome da fé. A imagem eternizada na pintura de Caravaggio, ga­­nha nuances modernas. No lugar do pai, a mãe de Isaac, uma viciada em televisão, é chamada por Deus para provar sua fé. Primeiro é preciso tirar tudo o que é superficial do garoto. Não é suficiente, e Ele dá a ordem final: executar Isaac. A imensa mãe encurrala o menino, que encontra um alçapão dentro de casa para se proteger. Mas o lu­­gar não é dos mais salubres.

Isaac se vê rodeado por coisa nojentas, e precisa seguir em frente para se manter vivo. Num mundo fantástico, dá a entender ser um imenso útero, bizarrices não demoram a aparecer. Bebês deformados, pedaços de fetos, tumores e abelhas (abelhas?) são os principais desafios a ser superados. A única arma de Isaac é a mais co­­mum das armas das crianças: o choro. E é com bolas de lágrimas que poderá destruir o que aparecer pela frente. Real­mente é insano. E estranhamente interessante.

A mistura de referência bíblicas e de repressão sexual está concentrada ao máximo na tela. Isaac ganha poderes quando encontra itens, como a coroa de Cristo que transforma suas lágrimas em sangue. Ou quando um feto se torna seu ajudante. Seria um irmão já vítima das loucuras da mãe? Pode ser. “Se há algo mais que The Bin­­ding of Isaac derivou da Bíblia além do enredo principal e de alguns itens, é a estrutura de parábola. The Binding of Isaac é uma parábola sobre a repressão sexual perpetrada pelo fascismo religioso”, escreve Yuri Arara.

Entre a ação, os produtores co­­locaram pequenas cutscenes. Ne­­las, Isaac tem sonhos que mostram sua insegurança com o mundo. Em quase todos os sonhos é ridicularizado de alguma forma. Num deles é bombardeado por fezes de colegas. Em outro, fica nu quando dá uma cantada em uma colega. Ele chora sozinho. E como num sonho, a cada vez que o personagem morre e volta para o co­­meço da fase os acontecimentos mudam. O jogador também fica inseguro.

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Não fica claro em todo o jogo se o alçapão é real ou apenas uma fu­­ga psicológica de um momento de catarse de Isaac. Além disso, The Binding of Isaac conta com diversos finais, nenhum deles ajuda a deixar a história mais clara. O que abre possibilidade para a interpretação do jogador, que pode casar seu repertório de significados com os signos que aparecem na tela. Uma obra em aberto. Um jogo de autor. Imperdível e polêmico. Só não dá para jogar acompanhado de jujubas.

* Texto publicado no caderno de Tecnologia da Gazeta do Povo