Encontre matérias e conteúdos da Gazeta do Povo

Vale-tudo: Hombridade, honra e humanidade

Escrito pelo amigo e colega jornalista Guilherme Voitch. Apreciem

Pode escrever aí. Se algum (vários, eu acredito) ancestral seu não tivesse saído com o tacape na mão dando bordoadas em alguém, você não estaria aí tomando seu refrigerante, navegando e escutando música. A humanidade se formou a ferro e sangue, discutindo bastante, intimidando, retrocedendo e, quando não havia mais alternativa, descendo a mão. Antes que você ache que estou te dizendo para levantar e sair esmurrando o vizinho, acalme-se. Relaxe. Séculos de pancadaria nos garantiram um código jurídico e um sistema moral de valores que nos permite coexistir de forma pacífica. É a modernidade, amigos. Conseguimos arranjar namoradas, ganhar dinheiro e resolver as desavenças dentro de uma ordem estabelecida, sem violência.

Mas ainda existe alguma coisinha em nós que precisa ser canalizada, nem que façamos isso deitados na cama, tomando uma cerveja e berrando com a televisão. Sim. O esporte. Precisamos competir, precisamos ver os outros competirem. Nos interessa saber quem é mais rápido, quem vai chegar na frente, quem é mais habilidoso, nos interessa ver o mais fraco superando o mais forte. Milhares de ano de competição como forma de sobrevivência deixam marcas.

E qual seria a forma mais pura, límpida e natural de competição? Tire as regras complicadas, os acessórios e a interferência de outras pessoas. O que sobra?Um homem contra outro. Um tentando subjugar o outro. Parabéns. Chegamos ao vale-tudo, ou ao mix martial arts (mma), como queiram.

Pois uma luta de vale-tudo é isso, senhores. Um homem contra o outro. Sem nada nas mãos. Sem golpes baixos. Sem ajudas externas. Um homem contra outro. Eu poderia ficar várias linhas tentando justificar o quanto há de hombridade, honra e humanidade nisso. Mas não o farei. Recorro a Homero e sua Ilíada, obra que é tida como o marco de fundação da civilização ocidental. Foi a partir das questões levantadas na narrativa da guerra de Tróia e da fúria de Aquiles que nasceram a filosofia, o teatro e a literatura. Logo, o tal do Homero tem autoridade para falar.

Pois bem, no sétimo canto da Ilíada, Heitor, o príncipe guerreiro dos troianos, descrito carinhosamente por Homero como “Heitor Homicida”, chama qualquer um dos membros do exército grego para a chincha. Como se dizia nos tempos de colégio, ele dá uma intimada. Como Aquiles, o bãm bãm bãm dos gregos está de bico, sem lutar, o escolhido para pegar Heitor é Ajaz Telemônio, um gigante que já havia barbarizado um monte de troianos. Ajaz apresenta-se para a luta dessa forma, segundo nosso bravo Homero:

“Dentro de pouco hás de ver, grande Heitor, claramente, o que em luta de homem contra homem conseguem fazer os guerreiros Acaios (gregos), ainda na ausência de Aquiles, o herói de coragem leonina…Muitos e muitos dos nossos te podem fazer, por sem dúvida, frente em qualquer circunstância. Ora sus!Iniciemos o duelo.”

Heitor responde: “Ó grande Ajaz Telamônio, pastor muito alegre de gentes, não me intimides assim, qual se eu fosse criança indefesa ou mulher fraca, que nada entendesse das coisas da guerra. Tenho bastante experiência em como prostrar o inimigo…Por isso mesmo, não quero atacar com nenhuma artimanha um inimigo como és, mas, lealmente, tentar alcançar-te.”

Não vou transcrever o resto da história. Leia o livro. Há várias lutas de heróis como essa, sempre com enredos parecidos. Apresentação, onde os heróis praticamente leem seus currículos, dizendo de quem são filhos, de onde vieram, quem já venceram. Depois temos as lutas sanguinolentas com escudos, lanças, ossos quebrados e carne perfurada. Por fim, a decisão. Alguém tem de ganhar, outro tem de perder. Na Ilíada, quando um herói subjuga o outro, o vencedor faz um pequeno discurso para o exército do adversário e para o seu próprio, enaltecendo o caráter  e as glórias do derrotado. Respeito, acima de tudo.

Voltemos aos tempos atuais. Tire as espadas e os exércitos, e as batalhas da Ilíada podem ser vistas regularmente no tablado do UFC. Assim como no roteiro de Homero, cada lutador é apresentado para o público e para o oponente. O anúncio do número de vitórias, nada mais é, que uma listagem de glórias. Depois vem a luta, com toda sua plasticidade e reviravoltas dentro do ringue. Por fim, alguém sai vitorioso. Carrega o cinturão, sem nunca esquecer do adversário derrotado.

Como não ver o mesmo heroísmo de gregos e troianos em Lyoto Machida, um samurai que respeita os adversários e os elogia publicamente, mesmo depois de ter passado por cima dos mesmos, como não se emocionar com Minotauro, que na infância foi atropelado por um caminhão e faz de cada vitória um exemplo de superação. Como não aplaudir os curitibanos como Anderson Silva, cujas lutas já foram descritas como um balé selvagem; Vanderley Silva, que melhor do que ninguém encarna o espírito sangue nos olhos dos guerreiros que iam para matar e morrer; ou Maurício Shogun, um rapaz educado e de voz adolescente que quando entra no ringue torna-se letal.

Há uma guerra em cada dia UFC, com honra, glória e hombridade, exatamente como gostava Homero.

Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Principais Manchetes

Receba nossas notícias NO CELULAR

WhatsappTelegram

WHATSAPP: As regras de privacidade dos grupos são definidas pelo WhatsApp. Ao entrar, seu número pode ser visto por outros integrantes do grupo.