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A música e a censura – A voz do dono e o dono da voz

Um interessantíssimo-íssimo-íssimo site acaba de ser colocado à disposição de todos os que gostam de música brasileira, mas principalmente aos que gostam de saber da história musical do país, ou simplesmente da história. Trata-se do www.censuramusical.com.

O site se propõe a analisar os efeitos da censura na produção musical durante o regime militar, e disponibiliza vários documentos que mostram como era feita a análise das canções então censuradas. Mostra como os censores, então representantes do poder autoritário, raciocinavam para vetar determinada música. É muito legal dar uma olhada e prestar atenção nos argumentos tanto os dos advogados das gravadoras e dos artistas, quanto os dos censores.

Vou dar um exemplo para que vocês vejam como era. Escolhi a música “Minha História”, uma versão de Chico Buarque para letra e música da dupla italiana Dalla e Pallotini. A música, no original, chamava-se “4/março/1943”. Para começo de conversa, vamos à versão da letra feita pelo Chico:

Ele vinha sem muita conversa, sem muito explicar Eu só sei que falava e cheirava e gostava de mar Sei que tinha tatuagem no braço e dourado no dente E minha mãe se entregou a esse homem perdidamente

Ele assim como veio partiu, não se sabe pra onde E deixou minha mãe com o olhar cada dia mais longe Esperando plantada pregada na pedra do porto Com seu único vestido cada dia mais curto

Quando enfim eu nasci minha mãe embrulhou-me num manto Me vestiu como se eu fosse assim uma espécie de santo Mas por não se lembrar de acalantos a pobre mulher Me ninava cantando cantigas de cabaré

Minha mãe não tardou a alertar toda a vizinhança A mostrar que ali estava bem mais que uma simples criança E não sei bem se por ironia ou se por amor Resolveu me chamar com o nome do Nosso Senhor

Minha história é esse nome que ainda hoje carrego comigo
Quando vou bar em bar, viro a mesa, berro, bebo e brigo
Os ladrões, as amantes, meus colegas de copo e de cruz
Me conhecem só pelo meu nome de Menino Jesus.

O advogado explicou que se tratava de uma versão de uma canção italiana e que até havia conquistado o terceiro lugar no Festival de San Remo, que naquele ano, 1971, havia sido transmitido para a televisão brasileira. Portanto era uma música que já estava em circulação e poderia ser ouvida nas rádios em sua versão original.

O advogado pediu para que Chico Buarque explicasse a poesia da canção e Chico escreveu a seguinte maravilha:

“O texto conta a história da mulher que se apaixona, como tantas outras, por um aventureiro que parte, como tantos outros, e do filho que nasce sem pai, como tantos outros. O poema – é um poema – difere dos demais pela maneira singela como a autora aborda o problema da mãe solteira. Nada de abortos, de fugas, nada de entregar o filho a um orfanato ou deixá-lo à porta de uma Igreja. A mãe, desesperada, alucinada, “com o olhar cada dia mais longe”, simplesmente dá ao filho o nome de Jesus. Um pouco por alucinação, mas também por ignorância. Um pouco por devoção, “por ironia ou por amor”. E um pouco, entende-se, para se comparar à Virgem Maria e se isentar de qualquer pecado. Finalmente temos o filho feito homem, igual a todos os homens, pequeno como todos os mortais, fraco demais para carregar às costas o nome de Jesus Cristo. E é só isso o poema”

Apesar da análise precisa e do esforço das argumentações do advogado, a censura proibiu a música. E o censor fez a própria análise para decidir. Mas é por ela que sabemos como pensava a ditadura (se é que podemos chamar a isso de pensar). Vamos a alguns trechos do parecer do censor:

“Trata-se de uma obra lítero-musical, cujo contexto resume-se a um relato feito por um filho espúrio (nominado Jesus Cristo pela mãe prostituta) sobre o romance efêmero de sua genitora com um desconhecido, responsável por sua vinda ao mundo”

“Traduzida para o português, entretanto, a obra se nos apresenta como uma paródia grotesca, segundo meu juízo de valor, além de fazer uso indevido e em vão do nome de Cristo.”

“Finalmente, o conteúdo deveras intelectivo da composição pode, mutatis mutandis, ser interpretado de maneira dúbia pela maioria do povo cristão, inapta a assimilar o alcance da mensagem nos termos propostos pelo tradutor”.

“Na linha desse raciocínio, concluo pela não conveniência da liberação da obra para a finalidade requerida.”

E assim pensava a ditadura e dizia o que nós podíamos ou não ouvir, ler, ver, escrever, tocar, cantar etc. Os donos do poder queriam nos obrigar a pensar como eles (e muitos ainda querem).

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