O Maranhão é mais do que desgovernos e suas consequentes violência e barbárie políticocarcerária. Estava eu submerso no meu oceano de ignorância quando Canhões de Silêncio me atiram um Azulejo do Tempo e me transportam para a Lavoura Azul onde José Chagas acende as palavras e com elas esculpe suas canções de expectativa.
O poeta nascido na Paraíba e construído no Maranhão chegou até mim não em livro, mas em um CD, o “A Palavra Acesa de José Chagas”, mais um aprontamento do multiprodutor e músico Zeca Baleira com seus Saravá Discos e A Ponto de Bala Produções.
Baleiro esclarece e rememora que Chagas já esteve presente no cancioneiro popular brasileiro em obra do Quinteto Violado, que gravou “A Palafita” e “Palavra Acesa”, dois petardos músico-literários. Musicados por Fernando Filizola, ganharam versões no disco atual assinadas pela próprio Zeca Baleiro (Palavra Acesa), e Lula Queiroga, Silvério Pessoa e Fernando Nunes (A Palafita), que é um dos destaques do disco.
José Chagas é ao mesmo tempo moderno e tradicional. Seus poemas, como prova o disco, são muito musicais. Uma das razões disso, segundo Baleiro, é que o autor também era saxofonista que se destacava em rodas de amigos em São Luís. Mas é a palavra que comanda.
Olha só a beleza começando pelos títulos de seus livros (alguns citados por mim no primeiro parágrafo):
Lavoura Azul
Os Canhões do Silêncio
Maré Memória
Os Azulejos do Tempo
Canção da Expectativa
Seus poemas são preciosidades delicadas, porém de versos fortes e marcantes, cheios de metalinguagem e inventividade. Por vezes puros, ingênuos, como neste “A Vida É Ciranda” (1979):
Eu brinco em mim numa infância branca
solta num jardim que nunca se tranca
E em mim o menino passa a vida inteira
rodando o destino numa brincadeira
(…)
Contenta-me o afinco com que em poesia
sou menino e brinco na manhã vazia
E ainda que cedo em mim me desande,
construo meu brinquedo de menino grande
Também pode ser duro, incisivo, como em “Os Canhões do Silêncio’ (1979):
Sou o que arrasta sua alma inteira
sobre uma vasta paz de poeira
Sou o que leva seu osso aonde
o cão da treva o morde e esconde
Sou o que atira sua impureza
de encontro à ira da carne acesa
É um escritor livre, que não se prende a estilos ou modismos, um escritor atual, mesmo que seus versos venham de meados do século passado. Pode vir em versos livres, modernos,m que namoram o concretismo, como em Sobrado (1979)
só
brado antigo
ecoa o só
tão
velho mirante
clara
boia a manhã
de ontem
e já
nela
se abre o dia
na manhã em fogo
asso
o alho da vida
assoalho do mundo
na paz agem
voos
e nuvens
algo
dão
de sonhos no ar
da cidade
cidade
idade
ida de
tempos e templos
Mas pode vir em soneto, como em “Azul de Memória” (1974), que é um xote-reggae delicioso na versão de Alê Muniz e Celso Borges:
O azul, azulejo ou azul laje,
azul longe, azul longo, azul vertido
sobre um templo de pedra que reage
contra a velha cidade e o seu olvido
Azul fora do olhar de quem viaje
em torno de seu sonho imerecido
e lance o esquecimento como ultraje
à cidade e seu ar controvertido
Azul independente de seu céu,
de seu mar, de seu deus, azul incréu,
livre da própria cor, azul feliz,
Que nos colore o sonho e a lembrança,
pois somente a memória é que não cansa
de conservar o amor sobre São Luís
José Chagas passeia por tudo, solto como o trapezista no meio do salto.
Li o CD e ouvi o livro. Tudo funcionou como um aperitivo delicioso para me dar água na boca, coceira no cérebro para conhecer mais e me queimar nas palavras acesas por esse grande poeta brasileiro, José Chagas.
Abaixo, alguma coisa que pode ser encontrada na rede. Começa com a versão de “Sobrado”, com Chico César e Ednardo, passa por Palavra Acesa, na versão de Zeca Baleiro, e depois recorda a criação do Fernando Filizola e Quinteto Violado para a mesma Palavra Acesa.