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A produção musical do Paraná reflete a identidade local?

Reproduzo aqui o texto que enviei para o Caderno G Ideias, que sai todo sábado na Gazeta do Povo. O desta semana discute a música do Paraná. Um discussão interessante que dá para fazer dezenas de edições sobre o mesmo assunto. Como o meu texto saiu editado com separação e pequenos cortes, que não o comprometeram, reproduzo aqui a íntegra. As demias reportagens você pode ler na Gazeta aqui.

Daniel Castellano/Gazeta do Povo
Grupo Pé de Ouro da Ilha de Valadares, em Paranaguá, referência do fandango, dança e música típicas do litoral do Paraná

O Paraná é um estado obcecado por identidade. A razão para isso acontecer é simples: ele não a tem, ou, pelo menos, não tão aparente quanto as de outros estados semelhantes em tamanho de população e riqueza, como a Bahia, o Rio Grande do Sul ou Pernambuco. Já São Paulo também não tem lá muita identidade, mas compensa esta ausência pela história e pela riqueza, em muito superior às dos demais estados do país. Esta personalidade paranaense – ou paranista, como preferem alguns – é buscada desde o início do século passado e as artes foram uma das formas utilizadas para tentar dar ao estado esta “característica própria”. Esta edição do G Ideias falará um pouco sobre identidade paranaense – ou a falta dela – e a música. Fiz este preâmbulo para introduzir o tema que me foi proposto, o de discutir se a produção musical reflete temas e a identidade locais.

Para responder diretamente a questão acima, afirmo que a música feita no Paraná não reflete e nem deve refletir temas e identidades locais. Não, não estou dizendo que não se deve fazer música sobre as coisas do Paraná. Apenas que a música feita no Paraná não deve ter como preocupação única o paranismo. Fazer isso é assinar a declaração de isolamento do resto do país e do mundo. Seria muito provincianismo. É claro que belas canções falando de nosso povo, nossa geografia, nossos costumes e idiossincrasias vão e devem continuar sendo feitas. Mas não exclusivamente isso. E os artistas não devem ter esta obrigação em mente quando estiverem criando.

O Hino

Vamos começar pelo início, com um pouco de história. Existe uma música fundamental que foi feita para representar o Paraná. Sim, claro, estou falando do Hino do Paraná — vocês podem ver a letra nesta página. A música é de Bento Mossurunga (Castro, 6 de maio de 1879 — Curitiba, 23 de outubro de 1970) e letra de Domingos Nascimento (Guaraqueçaba, 31/05/1863 — Curitiba, 30/08/1915). A dupla criou a obra em 1903, mas ela só foi oficializada como hino do estado em 1947, ou 32 anos depois da morte do poeta, um dos precursores do Simbolismo, este movimento poético do final do século 19 e início do século 20, que foi mais forte e duradouro no Paraná do que no restante do país.

Além de escritor, Nascimento foi ainda militar (defensor da República), jornalista (criador e colaborador de vários periódicos no Paraná, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul) e político (chegou a deputado federal). Também é o autor do Hino de Paranaguá, oficializado em 1910. Figura importante de nossa história, que deveria ser mais ensinada nas escolas.

Eu não gosto de ufanismos e, portanto, de forma geral, não gosto de hinos. Mas, comparando, vemos que no Hino Nacional há referências claras à história e ao povo brasileiro. O mesmo não acontece no hino paranaense. Tire-se a palavra Paraná e a substitua por qualquer outra – Amapá, por exemplo, para preservar a métrica e a rima, mas poderia ser Maranhão, Bahia, Rio de Janeiro – e o hino se mantém. Fora o nome do estado, não há nada que caracterize a letra como sendo feita para o Paraná. Não há referências. Isso não é nenhum juízo de valor estético, apenas uma constatação.

Já o maestro Bento Mossurunga é uma das maiores referências históricas da música paranaense. Nasceu em Castro dentro de uma família musical, estudou piano e violino em Curitiba, transferiu-se para o Rio de Janeiro em 1905, onde morou por 25 anos trabalhando com música e voltou a Curitiba em 1930. Aqui deu aulas, compôs e criou grupos musicais, entre os quais a Orquestra Sinfônica da Universidade do Paraná (futura UFPR). Compôs música erudita, valsas, sambas, choros, mazurcas, tangos e até marchinhas carnavalescas. Não ficou conhecido por se dedicar a uma música que tivesse a característica do Paraná. Nem mesmo o hino do estado é uma “música do Paraná”.

Fandango

O que seria a música do Paraná? Bom, tem o fandango, com suas violas de fabricação própria, com afinações únicas e o sapateado de tamancos. É tão característico que há a promessa do Instituto Histórico e Artístico Nacional (Iphan) de transformá-lo em bem imaterial. Se a promessa for cumprida, seria o primeiro bem imaterial do Sul do país. A capoeira, o frevo e o samba, por exemplo, já são bens imateriais brasileiros. Portanto, se formos falar em música de característica paranaense, falaremos do fandango produzido no nosso litoral. No entanto, é música e dança de origem europeia que foram apropriadas pelos caiçaras do sul, principalmente no Litoral do Paraná, mas com incidência também em São Paulo.

O Grupo Fato, fundado em 1994, em Curitiba, que mistura MPB e pop, estudou o fandango e incorporou-o às suas composições e arranjos. O resultado ficou de bom gosto, mas não se trata de um grupo folclórico, é uma banda que também mistura tendências e ritmos de outras partes do mundo (do rock ao samba) para fazer um som atual e criativo. Também dá muito espaço aos poetas paranaenses. Ou seja, nos cinco discos já lançados, canta o Paraná, mas tem um som universal.

Rock

O sotaque paranaense aparece bastante na música atual popular produzida por aqui. Peguemos, por exemplo, a banda Blindagem. Pioneira no rock paranaense, está há mais de 30 anos na estrada. Lançou o primeiro disco, homônimo, em 1981, já trazendo a parceria com o poeta Paulo Leminski – iniciada ainda antes, com o vocalista Ivo Rodrigues (Porto Alegre, 1949 — Curitiba, 2010) na precursora banda A Chave. Este grupo conseguiu unir o rock com a música sertaneja, um movimento iniciado pelo trio Sá, Rodrix & Guarabira nos anos 70, também em paralelo com a curitibana A Chave. Já no disco de estreia, gravou uma versão da música “O Berço de Deus”, da dupla caipira Milionário e José Rico, com um arranjo mais para o blues, era o blues rural paranaense. É a banda mais representativa do Paraná de todos os tempos, mas dos cinco componentes mais conhecidos (ainda contando com Ivo nos vocais), apenas dois são paranaenses. Ivo era gaúcho, o baterista Pato Romero é argentino e o guitarrista Alberto Rodriguez é paraguaio.

Vanguarda

Arrigo Barnabé e Itamar Assumpção se conheceram e tocaram juntos em Londrina, onde moraram por um bom tempo. Arrigo nasceu lá e tem uma bela composição em homenagem à cidade. Itamar, que é do interior de São Paulo, mudou-se na adolescência para Arapongas e depois iniciou a carreira artística em Londrina. Dois músicos extraordinários, autores de influência na música contemporânea brasileira. São considerados símbolos da música paranaense? Nada disso, são conhecidos por participarem da “Vanguarda Paulista”, movimento dos anos 80 que reformulou a música em São Paulo, junto com grupos como Premeditando o Breque (Premê) e Rumo.

Piá de Prédio

Há, hoje, uma banda que faz questão de mostrar o sotaque e de cantar as características do povo paranaense, mais especificamente do curitibano. É Lívia e os Piá de Prédio, formada em 2008. Já lançou dois discos, os dois tendo Curitiba como a principal fonte de inspiração. Na música IIPR (sigla de Instituto de Identificação do Paraná), na letra, ela resume o que é ser paranaense:

“Recebi uma carta registrada / do Instituto de Identificação do Paraná / que me perguntava quem é você / e eu não soube o que responder // … / que me acusava / Você não tem nada pra chamar de seu / nesse buraco negro / tudo se perdeu // Você não tem capela no Cemitério Municipal / E sete palmos de terra neste pinheiral // Pode até ser verdade / Mas não me impede de responder / Que eu sou eu e eu nunca vou deixar de ser // Que eu sou tropeira / Eu sou Guarani / Eu sou estrangeira / Eu sou daqui / Desço o Itupava / Subo o Marumbi / Zero quatro um / Eu sou do meio de lugar nenhum.”

Ou seja, a música do Paraná não reflete a característica do Paraná, até porque ela não existe. Não há uma característica única que nos defina. Ou parafraseando o que já disse o historiador Brasil Pinheiro Machado (Ponta Grossa, 12 de dezembro de 1907 — Curitiba, 18 de outubro de 1997): nossa característica é o incaracterístico.

Hino do Paraná

Hino do Paraná (Bento Mossurunga / Domingos Nascimento)

Estribilho

Entre os astros do Cruzeiro, És o mais belo a fulgir Paraná! Serás luzeiro! Avante! Para o porvir!

I

O teu fulgor de mocidade, Terra! Tem brilhos de alvorada Rumores de felicidade! Canções e flores pela estrada.

II

Outrora apenas panorama De campos ermos e florestas Vibra agora a tua fama Pelos clarins das grandes festas!

III

A glória… A glória… Santuário! Que o povo aspire e que idolatre-a E brilharás com brilho vário, Estrela rútila da Pátria!

IV

Pela vitória do mais forte, Lutar! Lutar! Chegada é a hora. Para o Zenith! Eis o teu norte! Terra! Já vem rompendo a aurora!

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