A terra da liberdade absoluta
“O romance é a terra da liberdade absoluta e, nele, a mentira é crucial.” A frase é do escritor e filósofo francês Paul Tabet, dita em uma entrevista à psicanalista e escritora Betty Milan (Folha de S. Paulo, 24/8/2003). Pode-se generalizar e afirmar que a literatura (ou toda a arte) deve ser a terra da liberdade absoluta. Não precisa respeitar regras, mitos, religiões ou crenças sociais vigentes. Nem mesmo as do escritor. Cria o seu próprio mundo.
No entanto, desde que Aristóteles teorizou sobre o princípio de mimesis (a arte como representação do real), a vida dos homens com suas crenças sociais e emocionais vem sendo ao mesmo tempo a grandeza e a limitação da literatura de ficção, notadamente da prosa. As regras e imposições da sociedade e as tentativas de ruptura destes determinantes sociais estão sempre presentes na história da literatura. Há uma eterna convivência e tensão entre o real e o suprarreal, a razão e aquilo que vai além da razão. Ou, para citar Kant, quando tentava criticar a razão pura e criar uma filosofia trascendental, a literatura pode habitar o território do “suprassensível”, que vive entre a razão e o sentimento.
Schiller e Sábato
O pré-romântico Schiller, inspirado em Kant, reverteu o conceito de sublime que, para ele, deixa de ser uma representação da harmonia e do equilíbrio, mas surge da tensão. A arte não se preocupa apenas com a harmonização entre liberdade e necessidade, entre o indivíduo e o mundo. Ela se faz sobre a tensão que existe entre eles. O autor de “Os Bandoleiros” e “Mary Stuart” conclui que a arte deve transcender a realidade.
O argentino Ernesto Sábato, em O Escritor e seus Fantasmas, escreveu: “… fui tomando consciência destas obscuras motivações que levam um homem a escrever, séria e até angustiadamente, sobre seres e episódios que não pertencem ao mundo da realidade; e que, no entanto, por curioso mecanismo, parecem dar o mais autêntico testemunho da realidade contemporânea.”
Os clássicos
A história da literatura nos dá inúmeros exemplos desse pêndulo criativo entre o real e a fantasia, sobre essa tentativa de se mostrar a realidade usando “seres e episódios que não pertencem ao mundo da realidade”. Quando Ulisses é tentado pelo canto das sereias, amarra-se ao mastro da nave para não ser sugado pelo irreal. O herói de Homero viveu tantas aventuras, reais e irreais e por tanto tempo, que quando voltou, nem seria reconhecido, não fosse uma cicatriz que pertencia ao mundo real, de antes da viagem.
Quando Dante, no meio do caminho de sua vida, vagava por uma selva escura, foi o encontro com o espírito do poeta Virgílio que o propiciou fugir da pantera, do leão e da loba e iniciar uma saborosa viagem pelo Inferno, Purgatório e Paraíso – essas invenções do próprio homem para explicar o “pós-vida”, que o deixam mais temente a Deus ou a deuses.
O Engenhoso Fidalgo D. Quixote de la Mancha, por ler muitos livros de cavalaria, combatia moinhos de vento para preservar um mundo que já não mais existia.
Quando Gregor Samsa acordou certa manhã transformado em um inseto monstruoso, mesmo assim machucou a boca até sangrar para abrir a chave da porta do quarto. Ele queria acompanhar o gerente de sua empresa para executar o trabalho de caixeiro-viajante. Ou seja, mesmo na absurda situação em que se encontrava, torna-se ainda mais absurdo o desejo de não se desprender do mundo real do trabalho, das coisas do dia-a-dia.
Nesses poucos exemplos acima, mostra-se como tudo pode ser dito, tudo pode ser contado na literatura. Inclusive construir, preservar ou destruir mitos e tabus.
Literatura especulativa
Há dentro da literatura um nicho em que esta liberdade é exercitada com ainda maior desenvoltura. Trata-se da ficção científica (FC), que o pesquisador do assunto, o escritor e editor Roberto de Sousa Causo, prefere chamar de literatura especulativa. Ele trata do assunto no livro Ficção Científica, Fantasia e Horror no Brasil – 1875 a 1959 (Editora UFMG, 2003).
A literatura especulativa, para Causo, englobaria também os gêneros de ficção científica e ficção de fantasia (horror). Não seriam apenas autores como Jules Verne ou Geoge Orwell ou H.G Wells, entre outros mais conhecidos, que fariam esse tipo de ficção. Podemos incluir muitos clássicos da literatura universal – pense em Ilíada, A Divina Comédia, D. Quixote, A Metamorfose e outros – como contribuintes da literatura especulativa. Elas se enquadram na definição de Causo:
“No centro dessas narrativas está a tentativa de criar realidades alternativas que vêm relativizar a nossa própria. Exatamente o que tenta fazer a literatura especulativa – especular sobre a realidade, fornecendo paradigmas que relativizam as compreensões estabelecidas.”
Espaço e tempo
Como lembra Causo, a literatura pós-moderna, ou ultramoderna, abriu espaço para várias vozes de fora da cultura dominante, mas que existem simultaneamente a ela, nos expondo outras “subjetividades (como modos particulares de cognição)”. Com a ficção científica, essas outras vozes podem especular sobre a realidade sem se importar com espaço e tempo e esta é uma diferença fundamental para com os outros gêneros:
“A ficção científica sugere que a subjetividade varia igualmente num sentido diacrônico (disposto numa linha de tempo), porque culturas se sucedem e modos de vida assumem novas configurações. Essa perspectiva deve se manter na mente do leitor, se o que buscamos é a compreensão dos efeitos do gênero, no plano dos estudos culturais e na relação entre expressões e convenções específicos da FC, ou na sua mera articulação em torno do discurso científico. Nesse sentido, a ficção especulativa deve ser compreendida como uma tradição literária autônoma, e não apenas como um arranjo de temas e motivos – observação que serve também para todos os outros gêneros literários.”
Evitando-se o cronocentrismo, em que tudo é analisado do ponto de vista atual, da contemporaneidade, pode-se evitar também a simples repetição das visões estabelecidas pelas ideologias ou crenças sociais dominantes. Voltemos a Causo:
“Para a FC, o universo é um processo dinâmico no qual operam fatores que vêm sempre relativizar visões estabelecidas. No gênero, a especulação livre é a norma, e um mesmo autor se dá ao direito de escrever obras que abrigam visões contraditórias, porque a especulação em si representa a possibilidade de encarar o universo de maneira aberta.”
Outras realidades
O caso não é de apenas abstrair o leitor de uma realidade massacrante. Ao nos deslocar para um outro mundo, faz com que comparemos as duas realidades. É esta comparação a grande força da literatura de ficção científica, ou literatura especulativa. Não é apenas um afastamento da realidade, mas um afastamento crítico, um questionamento de valores que há, ou deveria haver, em toda a arte, como constata Bakhtin, em Questões de Literatura e Estética – A teoria do romance:
“A arte cria uma nova forma como uma nova relação axiológica com aquilo que já se tornou realidade para o conhecimento e para o ato… mas é justamente por isso que na arte o elemento da novidade, da originalidade, do imprevisto, da liberdade, tem tal significado, pois nela há um fundo sobre o qual pode ser percebida a novidade, a originalidade, a liberdade – o mundo a ser conhecido e provado, do conhecimento e do ato, e é ele que na arte se apresenta como novo, é pela relação com ele que se percebe a atividade do artista como sendo livre.”
Caminho possível
Podendo ir e vir no tempo com a desenvoltura de quem vai e vem em um curto espaço, o escritor de ficção científica pode também acabar com a ideia de que nosso tempo, o tempo em que vivemos é o ápice intransponível do desenvolvimento humano, seja tecnológico, social, intelectual ou moral. A especulação, a criação de um mundo fora do tempo atual pode nos mostrar outros exemplos de civilizações e questionar essa ideia que temos de que o homem está sempre evoluindo – evolução usada aqui no sentido de superação e aprimoramento – e que somos nós o produto final desta evolução.
A literatura especulativa pode mostrar que somos apenas uma das alternativas possíveis e não o produto único e final. Ou, voltando a emprestar as palavras de Causo: “Nosso presente é apenas um caminho possível no desenvolvimento do processo histórico, e não o produto final da progressão antecipável de uma cadeia de eventos seguramente fixos no rumo do progresso, conforme afirma o positivismo.”