Saiu na parte impressa da Gazeta do Povo deste sábado uma reportagem minha sobre o novo livro do Rui Werneck de Capistrano. Pelas limitações do jornal, nem tudo foi publicado. Então, aqui vai a versão integral da reportagem, com um entrevista com o autor.
No princípio era o verbo do Dalton Trevisan. Depois vieram o computador e com ele e a pressa da vida, as escritas continuaram diminuindo. Hoje temos o Orkut, o MSN e o Twitter. “Escrever é a arte de cortar palavras”, teria dito Voltaire, ou teria sido Drummond, ou quem sabe Guimarães Rosa? Mas escrever pouco e bem, não é para qualquer um. O escritor curitibano Rui Werneck de Capistrano é um destes poucos. Ele deu à luz o “romancélere”, como ele mesmo descreve, chamado “Nem bobo nem nada”. O romance é todo feito de fragmentos de lembranças de um pintor de paredes. É construído como se a cada página ele contasse um pouco da sua história diretamente ao leitor. Um pensamento, um parágrafo apenas em cada uma das 150 páginas da história. E não precisava mais que isto.
Para chegar à esta concisão, Werneck já escreveu muito. Nem ele sabe ao certo quando saíram (vocês podem verificar na entrevista que acompanha este texto), mas este já é o décimo livro do escritor e publicitário que já fez poesia, contos, romance, frases, pensamentos e tudo o que envolve a criatividade e a labuta literária. Em 1988, com “Máquina de escrever”, ganhou o Concurso Nacional de Contos do Paraná. Até hoje se discute se o livro era de contos ou um romance fragmentado. ” São contos porque eu quero que sejam”, disse o autor, tentando acabar com a discussão. Naquele livro, quem construía a unidade dos textos era o personagem Goliardo, que passeava pelos escritos com sua máquina de escrever, este instrumento agora tão anacrônico. Goliardo contava e refletia sobre a vida, divagava, experimentava. Era um intelectual.
Já o personagem de “Nem bobo …” é um pintor de paredes, bem mais cru, antes “matuta” do que reflete. É mais direto. Pensa menos e vive mais. E vai nos contando esta vivência que tem tudo para ser medíocre, mas que prende a atenção do leitor que não consegue desgrudar os olhos das páginas do livro, feito um amante seguidor do “big Brother”, ou outro reality show televisivo. A cada página um lance, que passa para outro e para outro e vai continuando e de repente volta para uma história incompleta e segue nos relatos. Sem ambientes, sem descrições de lugares, sem muita reflexão, sem psicologismo, simplesmente vai-se tocando a vida adiante e nos contando.
“As informações vêm naquilo que o pintor nos conta. Seus raciocínios, sua sensualidade, o erotismo que extravasa por tudo, permeia esses silêncios brancos. Eles criam intuições capazes de formar uma visão das coisas, trazidas dentro do que o contador percebe e alcança”, escreve o historiador de arte Jorge Coli, na apresentação do livro.
Pela urgência da escrita, pela dureza das palavras, pensamos logo em Dalton Trevisan. O autor afirma que tem a escrita ainda mais “descarnada” do que a de Dalton, que teria maior preocupação literária (ver entrevista). Mas a influência não é negada, uma vez que ele considera Dalton o “maior autor brasileiro”.
Antes de “Nem bobo…”, Werneck escreveu um outro romance, “O Conselho”, lançado em 2000 em que o texto é, por vezes, hiperbólico, por outras rala e rola no poético. A história é contada com voltas, com pensamentos, com reflexões. Os dois livros mais recentes, portanto, apesar de dois romances, são completamente diferentes. O pintor de “Nem bobo nem nada” estaria mais próximo de Goliardo (a voz que une os contos de “Máquina de escrever, de 1998) do que de Cid Kaplan, a voz do personagem principal de “O conselho”.
Em vários textos do novo livro aparece a interjeição “erde!”, que pontua um desgosto ou uma situação inusitada. É quase um palavrão, um xingamento. Para que uma história dê certo aos olhos e ouvidos do leitor, é preciso que o autor encontre uma voz precisa para seus personagens. Nunca antes na história da literatura de Werneck ele encontrou tão bem uma voz quanto a que deu ao seu pintor de paredes. Ele acertou em cheio. Erde! Como diz na entrevista, não foi um trabalho rápido “demorou uma vida inteira”. Tanto esta voz, quanto os trechos contados, casam perfeitamente bem com a epígrafe do livro, de Plutarco: “Um espartano depenou um rouxinol e, encontrando pouca carne, concluiu: – És apenas um voz e nada mais”
Serviço
Nem Bobo nem Nada, de Rui Werneck de Capistrano. Editora Livre Expressão (www.livreexpressão.com.br). Vendas diretas com o autor: rwcapistrano@gmail.com
Segue a entrevista na íntegra
Primeiro, me dá a relação completa dos teus livros, com os respectivos anos de lançamento.
Ops, uma relação completa é igual omelete. Um dia tem pouco ovo, outro dia falta sal. Me lembro do primeiro livro: Nuvem sem calças, lá por mil novecentos e lá vai Zequinha. Poemas escolhidos por mim e pelo Tadeu ‘polaco da barreirinha’ Wojciechovski – a culpa maior é dele – (http://polacodabarreirinha.wordpress.com/) . Do que me lembro mais é da capa do Lee Swain (http://leeswain.blogspot.com/) que foi considerada pornográfica por alguns menos preparados. E lembro da feitura do livro. Aprendi a fazer fotolito e diagramei tudo. Depois vieram outros livros: Abaixo a bomba, Seres Víveres, Bife Sujo & Cia (com Neri da Rosa), A Consulta (minilivro), Máquina de Escrever (Premiado no Concurso Nacional de Contos do Paraná, 1988), Ovos do Ofício, Tal de tanto de tal…, O conselho, Nem bobo nem nada. Acho que é isso. E mais participações em coletâneas de contos e poemas que foram premiados pelo Brasil afora, como Contos Jovens e Jovens Contos Eróticos (Editora Brasiliense).
1 – Em comparação com os teus livros anteriores – pelo menos com os que tive contato, parece ser a primeira vez que o personagem principal do Nem bobo nem nada é completamente distante da tua realidade de publicitário, intelectual. Como surgiu a idéia de usar esta voz distante do autor?
Acho que pra me encontrar, eu me distancio cada vez mais de mim. Já escrevi de tudo, se você ler atentamente. Já desenhei, fiz traduções, escrevi peça de teatro, novela, frases, contos, poemas, e, agora, o romancélere Nem bobo nem nada. E, quanto a ele, começou com leitura de um bilhete achado na rua. Esse negócio de rabiscar umas frases pra alguém, você sabe, é relâmpago e, depois, trovão. Relâmpago naquelas simples palavras que, às vezes, resumem toda uma história. Depois vem o trovão. A gente tem que imaginar um contexto, uma vida, duas vidas, uma traição, uma família, um fim de caso e tudo mais. E, se você ler a contracapa do Nem bobo, vai ver que o Jorge Coli sentiu isso. Ele pedia sempre mais. Imaginou toda uma trama e queria ver o final. Eu me batia bastante quando o pintor parava de me ‘mandar’ recados. Até eu queria ver no que ia dar. E, quando ele, o pintor, pintou a escuridão, senti que tinha que parar. O que mais eu podia querer?
2 – Deu muito trabalho assumir esta voz, encontrar o tom certo? Foi rápido? (“é apenas uma voz e nada mais”)
Claro que deu trabalho. Escrever menos é sempre mais trabalhoso. E o fim de cada capítulo me angustiava, pois nem sabia o que viria depois. Não é uma história linear. Você viu que a epígrafe ‘caiu’ bem para o romancélere. Nem sei mais como achei. Mas foi depois de o texto estar pronto. Eu sempre me impressiono com epígrafes que parecem não ter sentido. Já viu umas assim? Essa caiu como uma luva. Só o autor parece saber por que colocou, não é? Se foi rápido encontrar o tom certo? Demorei a vida inteira, só isso.
3 – Como surgiu a proposta de fazer o romance só com as memórias do personagem, como se ele estivesse relatando tudo para alguém (o próprio leitor)? Usando travessão a cada início.
Nem sei se são memórias ou acontecimentos quase presentes. O travessão tem o propósito de não perder de vista a voz do pintor. O serviço de revisão da editora havia tirado os travessões. A Célia, minha namorada, e eu achamos que tinha que ficar. Pode parecer implicância, mas ficou mais interessante. Ou não? E você viu muito bem que a conversa é com o leitor, que pode ou não aceitar o papo do pintor. É só fechar o livro, não é? Mas acho que ninguém consegue deixar de escutar até o fim.
4 – Ficou ou ainda fica com medo de ser comparado a Dalton Trevisan pela celeridade do texto, embora o seu seja romance e o dele conto? Em algum momento essa possível comparação chega a te preocupar?
Dalton Trevisan é o maior autor brasileiro, acho eu. Se eu for comparado a ele… (risos) Porém, se você olhar bem vai ver que meu texto é mais ‘descarnado’, menos literário ainda que o do Dalton. E acho que o Dalton tem uma voz antiga, sem nenhum demérito, pois ele divaga ainda no fraseado. Porém, ele mesmo disse que quer chegar ao bilhete do suicida. E isso é o máximo do mínimo. Agora, veja bem, o Dalton criou literariamente uma cidade, um povo e toda sua vida. Isso poucos escritores no mundo conseguem. Ele tem uma voz poderosa e única. É o maior.
5 – A interjeição (é uma interjeição?) “erde!” já existia, ou surgiu com o personagem?
Essa expressão é bem conhecida, pelo menos por mim e por minhas filhas. A gente usa muito, desde sempre. É uma interjeição que eu gosto muito e o personagem adotou. O Caio (Junqueira Maciel, escritor), no prefácio, descobriu significados diferentes pra essa expressão. E isso me empolgou. Acho que o leitor é que descobre o texto e o que quer que o texto diga. O leitor é a voz do livro.
6 – Por que não quer fazer lançamento em Curitiba?
Ah, nem me pergunte isso. Curitiba era uma cidade-teste. Isso em termos de propaganda. E o motivo disso, lembre-se da minha vida publicitária de 30 anos, é que Curitiba era e é suficientemente distante de São Paulo, do Rio de Janeiro e de Porto Alegre. E tinha, segundo os pesquisadores, boa qualidade de vida e bons meios de comunicação. Quer dizer, um lançamento aqui era meio que independente do resto do Brasil. Não vazava. Era um circuito fechado. Então, se o produto pegasse aqui, podia ser lançado no resto do Brasil ou, pelo menos, nas outras grandes cidades. Hoje, Curitiba não serve, acho eu, pra isso. Estamos globalizados, pois não? Uma bala perdida da favela do Rio pode encontrar um curitibano no calçadão da XV, não é? Escapei da pergunta, ufa!
7 – Como foi o lançamento em BH e tem outros previstos?
Foi ótimo rever amigos de Belo Horizonte. Amigos e ótimos escritores. Quem não conhece Antonio Barreto, Caio Junqueira Maciel, Francisco Mendes e Sergio Fantini tem que correr pras livrarias e sebos. Os mineiros, por viverem cercados de montanhas, podem enxergar mais longe. O nome Belo Horizonte não é à toa. O que aqueles caras escrevem, bebem e conversam não é brincadeira. Causos e causos rolam a noite inteira e a gente só tem motivos pra admirar os mineiros (garimpar é aquele verbo do princípio e do fim, lá). O Nem bobo nem nada está lançado. É como um satélite. Foi. Agora fica rodando na sua órbita em volta da Terra e mandando mensagens. Quem pegar, pegou, erde!
8. Tem outros livros na gaveta? Pretende lançar?
Um escritor sempre tem algo pra publicar. Tudo depende da hora, do momento, dos entornos. Dá vontade de lançar dois ou três novos. Mas, aí, tomo uma cerveja e a vontade passa.