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O escritor Domingos Pellegrini vem fazendo haicais há uns bons punhados de anos. Tanto que cunhou o termo “haicaipiras”, para designar o que faz, afinal sua literatura tem uma forte aproximação com a terra vermelha de sua Londrina. O termo surgiu em uma capa de livro em 1994, com “Haicaipiras e Quadrais” (Fundação Cultural de Curitiba). Voltou em 2010, ano da comemoração do centenário da migração japonesa para o brasil, com “Brasigatô – Haicaipiras no ano do centenário Brasil Japão” (Editora Leitura S.A.).

O autor me fez a gentileza de enviar o livro “Haicaipiras”, em que compilou seus trabalhos poéticos nesse estilo, numa Edição do Autor, de 2012. Por algumas daquelas confluências cósmicas, estava tento uma breve e periférica imersão em cultura japonesa e, consequentemente, em haicais. Tudo se iniciou com a visita à exposição “Múltiplo Leminski”, no Museu Oscar Niemeyer, continuada com a leitura do “Toda a Poesia” (que reúne a integralidade a obra poética leminskiana). Também revia a biografia de Leminski, “O bandido que sabia latim”, escrita por Toninho Vaz, e a biografia de Matsuó Bashô, escrita pelo próprio Leminski.

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O livro de Pellegrini chegou para “completar o clima” hacaiístico que estava vivendo. Na capa, um bonsai do qual nascem bananas, mangas, mimosas (ou mexerica, ou bergamota) e guaraná. Na contracapa, esta preciosidade: “Bonsai/ epopeia condensada/ em haicai”.

Quando abri o livro, no entanto, me veio uma decepção. Cada haicai é precedido por uma curta história de como ele surgiu. Aquilo me deu uma angústia. A primeira coisa que pensei foi “isso é como explicar uma piada antes de contá-la, vai perder toda a graça”. Parei nas primeiras páginas.

Me dediquei a outros livros que estava lendo, incluindo aí o término do “Bashô” que, encerrado, me deixou uma vontade de “quero mais haicai”. Voltei ao Pellegrini, mas fiz um trato comigo mesmo. Vou ler apenas os haicais, sem as explicações. Assim fiz, e não me arrependi.

Pude ler poemas belos como este:

A paina, alvo engano
é a neve possível
neste meridiano

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Ou estes, que trazem a observação zen para dentro de casa, nas situações mais corriqueiras:

Montanha que brilha
a louça lavada
empilhada na pia

Bem estranho
no meio dos alumínios
o bule de estanho

Casa quieta
mas na fresta ao sol
o pó em festa

Tem visita que nem senta
tem visita que acampa
visita que seca avenca

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Ou, o típico haicaipira que se revela até na forma de falar:

Carma, assim é a vida
quanto mais longa
mais cumprida

O ver a beleza lírica e romântica mesmo na tempestade

Primeiro chove de pancada
depois de mansinho
carinho do céu

A nuvem carneiro
em touro transformou-se
e em chuva foi-se

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Vou pular a poça
escorrego na lembrança
caio no meio da infância

E muitos outros falando de frutas, de bichos, de lua, de sol, de filosofia etc.

Gostei da minha opção de ler apenas os haicais, foi uma experiência iluminadora.

Ler, requer dedicação. Ler poesia, mais ainda. Ler haicai, então, nem se fala. Impossível fazê-lo com pressa, com ansiedade. Com a mente caindo direto no futuro e pulando o presente. É preciso abrir abrir uma janela temporal em nossa vida e ficarmos mais atentos ao interior do que ao exterior. Longe dos facebooks que nos sugam. Desacelerar. Ler haicai é observar a natureza, o entorno, o outro. Quem pode fazer isso com pressa?

É preciso repousar no instante, no momento, que como diz o próprio Pellegrini, “é o único pedaço disponível da Eternidade”. Ou, como escreveu Leminski: “De repente, por dentro de um dia, passa um haicai que acabou de roubar a alma de um instante, como se roubaria um beijo, se o tempo fosse uma mulher bonita”.

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Lidos os haicaipiras do Pellegrini, então aceitei ler as explicações que antecediam cada um. Descobri que eram mais que textos explicativos, eram minicrônicas. Prosa de cotidiano feita por um escritor sensível. Escritos como este:

“É parado que se olha bem as ligeirezas. É devagar que se aprecia as belezas. A diferença entre olhar e ver é como passar de trem e passar a pé.”

Ou este:

“Ele tinha cinco anos, eu cinquenta, ele caiu, machucou, chorou no meu peito, parou de chorar para perguntar por que a gente escuta o coração. Porque é um músculo que toca bumbo, falei. Ele perguntou por que, falei que é para avisar que está bombeando sangue, ele ficou olhando meu peito como se enxergasse dentro.”

Ou ainda:

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“Lendo filosofias da Índia, fiquei sabendo que o ‘darma’ é teus deveres, ser bom pai, bom filho, bom marido, bom cidadão. O ‘darta’ é tuas táticas, tuas armas, teus estratagemas e estratégias. Desconfio do ‘karma’, mas em ‘darma’ e ‘darta’ acredito, e com isso me sinto um tanto hindu.”

Também não me arrependi de ler os textos separados dos haicais. Foi uma experiência esclarecedora e não menos literária.

Por fim, li o livro uma terceira vez, agora do começo ao fim, seguindo a ordem, sem pular nada. Foi uma experiência completa.

Não vou juntar os textos introdutórios e os haicais aqui. Quem quiser, vai ter de procurar, assim como eu procurei meu jeito para lê-lo. Afinal, cada um tem o seu próprio caminho.