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Lembranças do escritor assassinado

Da coluna Acordes Locais, publicada toda quarta-feira no jornal Gazeta do Povo:

Arnaldo Alves/Gazeta do Povo
Wilson Bueno foi encontrado morto em sua casa no fim do mês do maio

Hoje vou falar pouco de música. Vou falar de Wilson Bueno.

Nos tempos em que ele era boêmio, era muito fácil encontrá-lo pelas ruas/bares de Curitiba. Bebia demais e ficava chato. Felizmente, parou de beber antes de completar o suicídio com álcool. Ficou melhor, mais produtivo e mais criativo sem o álcool.

Lembro de uma tarde, lá pelos idos dos anos 80, em que o encontrei, muitas doses à minha frente, no antigo Bar dos Estudantes, ali na pracinha em frente ao Círculo Militar, ao lado do Teatro Guaíra. Cantou umas 15 mil vezes a música “Me Chama”, do Lobão – aquela: “Chove lá fora/ e aqui faz tanto frio/ Me dá vontade de saber/ Aonde está você/me telefona/ Me chama/ Me chama/ Me chama”. Cantava-a e dissecava-a, fazendo uma análise literário-sociológica daquela letra simples. Parava especialmente nos versos: “Nem sempre se vê /Lágrima no escuro” e “Nem sempre se vê/ Mágica no absurdo”.

A voz já tropeçava nas palavras, o que ajudava a enfatizar certo desespero da canção, transformando-a num blues chapado. Cantou e cantou e todo mundo da mesa foi embora, lógico. Eu fiquei. E ele cantou mais e, de repente, coisa de bêbado ou de poeta. Começou a chorar. E soltou um grito: “SOLIDÃO!!!” A voz ecoou nas paredes do Guaíra como se fosse um trovão e, de fato, começou a chover. Por esta época ele lançou Boleros Bar, um livro de contos, pesado como o período que ele atravessava.

Anos mais tarde, encontrei-o novamente em um bar. Dessa vez, não lembro se estava bêbado, acho que não. Já era o editor do jornal iterário Nicolau, respeitado e cultuado, mais fora de Curitiba do que aqui. E ele desfilou uma série de tangos e guarânias, uma atrás da outra. Estava bem-humorado e divertido. Foi nesse período que escrevia Mar Paraguayo, livro que lhe deu tanta projeção, no início dos anos 90 – e inspirou um média-metragem dirigido por Nivaldo Lopes. Nos anos 90, também começou a me chamar apenas como “meu editor”, porque eu o havia convidado a produzir uma crônica semanal em um suplemento da Folha de Londrina dedicado a Curitiba. Fez grandes textos ali.

Observador agudo da vida cotidiana, mas que sabia transcender e mostrar ao leitor novos ângulos. O texto tinha sempre um quê de poesia. Era, acima de tudo, um criativo. Sabia sonhar as palavras, as frases e os livros. Mas sabia também que, depois do sonho vinha um árduo trabalho de lapidação de nuvens. Por isso, seus textos, fossem aonde fossem, tinham sempre um mix de erudição e invenção.

Daquilo que ele escrevia para a Folha, também gostava dos seu Koans – minicontos baseados na filosofia zen budista que buscam passar uma espécie de ensinamento, mas não algo dado de professor para aluno, não a óbvia autoajuda. Ele a fazia mais do jeito como um mestre aponta a seu discípulo os caminhos possíveis, para que ele próprio (o discípulo ou o leitor) encontre seu “satori”, sua iluminação. Gostava da arte e da filosofia orientais. Era mestre nessa área.

Outra coisa que ele fazia muito bem era a crítica literária. Não à toa recebia pedidos de colaboração dos jornais da grande imprensa nacional, e mesmo internacional, devido a sua conexão com revistas literárias das Américas, cultivada quando foi editor do Nicolau. De certa forma nunca deixou de ser jornalista. Suas crônicas e mesmo sua literatura sempre guardavam (às vezes bem lá no fundo) um pouco do jornalismo, profissão que ele iniciou lá no Rio de Janeiro, onde frequentou a cultura e a boemia cariocas. Gostava de estar em jornais. Uma vez, lá pelos idos 1995, ao me presentear com um exemplar do pequeno e difícil romance Cristal (Siciliano, 1995), escreveu, com a consciência do fim de uma época:

“E vamos nós, “brave new world”, de disquete… Papéis, velhas laudas, amarelados papéis. Não, nenhuma nostalgia – acho os disquetes até mais higiênicos. Mas não resisti registrar aqui o fim de toda uma época – do jornalismo romântico, e amador. Lá atrás não vale a pena; é muito longe.”

Wilson Bueno foi assassinado quando preparava seu 14.º livro. É o fim de uma época. E eu tenho vontade de cantar; “Chove lá fora / e aqui faz tanto frio …”.

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