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Quando a gente fica velho, tem memórias difíceis de compartilhar com quem está ao lado. Memórias solitárias. Não é uma coisa inteiramente ruim, pois são experiências que você leva da vida — e que a cada ano ficam mais exclusivas. Mas é chato quando você tem uma dúvida e pergunta, por exemplo: “Você lembra com quem o Millôr Fernandes participou do Parcerias Impossíveis no Teatro Paiol?”

A pessoa a quem você dirige a pergunta, inevitavelmente responde algo como “Hã? Quem? O que?”

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Ainda mais quando nem o Google, coitado, tão jovenzinho, consegue responder a questão de pronto. É preciso uma pesquisa mais profunda. Da mesma maneira, nem adianta perguntar quem era a parceira da cantora Ademilde Fonseca, a Rainha do Choro, na mesma série “Parcerias Impossíveis” do Paiol.

Bom, a esta altura, como os leitores mais atentos, independentemente da idade, já devem ter se alertado, pretendo reunir neste texto o Teatro Paiol, que completa 40 anos, Millôr Fernandes e Ademilde Fonseca, mortos nesta mesma quarta-feira da véspera do teatral aniversário.

O Paiol foi um dos meus teatros de formação. Um lar cultural para minha adolescência e juventude. Ali ativei meu lado roqueiro, vendo a Banda Blindagem ser formada. Ali, tentava entender as discussões intelectuais e apreciar as músicas no Projeto Parcerias Impossíveis, que durou de 1979 e 1983 e reunia gente de diferentes conhecimentos, assim como Millôr e o jornalista e fotógrafo Yllen Kerr, adepto da pesca submarina e um dos introdutores do método Cooper no Brasil.

Mas a primeira lembrança do Teatro Paiol vai ainda mais longe, alcançando o dia da inauguração. No entanto, esta é uma lembrança televisiva. Não sei se foi uma transmissão ao vivo ou gravada, mas lembro de ver na televisão de casa, comprada pelo meu pai para acompanhar a Copa de 1970, a primeira televisão da minha família, o Vinícius de Moraes batizar o espaço com uísque e canções, ao lado de Toquinho, Marília Medalha e Trio Mocotó. Esta inauguração artística, a base de uísque foi em dezembro de 1971. A de março, comemorada agora, foi mais oficial, mais política.

O Teatro Paiol é um amigo cultural de 40 anos e foi ele que me apresentou pessoalmente a Millôr Fernandes.

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Segundo o Tablóide Digital, que reúne os arquivos do jornalista Aramis Millarch, Millôr esteve no Paiol em outubro de 1980. Na época, ele assinava duas páginas semanais na revista Veja e já havia colaborado com O Pasquim.

Naquela época, eu começava a pensar mais seriamente em ser jornalista e tinha adotado uma frase dele para me servir de guia: “Jornalismo é oposição, o resto é armazém de secos e molhados”. Atualizando, para quem não sabe o que é um armazém de secos e molhados, é como se fosse um supermercado, um local onde se faz negócios. O jornalismo não é um lugar para negócios, não é “negociável”.

Há outras duas frases de Millôr que uso como guia tanto para a vida profissional quanto para a pessoal. Uma delas é “Livre Pensar é só pensar”. Está ligada à de cima. O pensamento parece uma coisa à toa, mas não devemos submetê-lo a restrições. Devemos questionar, examinar questões por diversos ângulos, não restringir as possibilidades. Não devemos submeter o pensamento a impossibiidades. Se pensar é possível, tudo é possível.

A terceira frase matadora é outra clássica dele, uma autodefinição: “Enfim, um escritor sem estilo”, que trouxe do Pasquim e continuou a repetir por toda a vida. Se um estilo te aprisiona, exercite o livre pensar e transborde, ultrapasse, mergulhe, emerja, se expanda, mude, refaça, amplie, encurte, experimente, transforme.

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Outra coisa que me aumentou a admiração por Millôr foi saber que ele foi um dos introdutores do haicai no Brasil. Passou a escrever seus primeiros nos anos 50, na revista O Cruzeiro, na seção de humor Pif-paf. Não, não sou tão antigo assim para me lembrar, este é um conhecimento adquirido lendo por aí. Como ensina o livro Boa Companhia: Haicai (Cia. Das Letras, 2009), desde o início do século XX, trazido pelas mãos e mente de Monteiro Lobato, o haicai passeia entre os escritores brasileiros. Millôr lhe deu um impulso, que depois seria continuado e aprimorado por Leminski e Alice Ruiz.

Estou chegando ao final do texto, e onde entra a Ademilde Fonseca nessa história? Bom, ela morreu no mesmo dia do Millôr então ficou um tanto esquecida a nossa rainha do choro. Para os que pouco estudam a nossa música e ainda não sabem, ela era considerada a cantora mais rápida do país. Por causa dela que muitos chorinhos, antes música instrumental, passaram a ter letra. As músicas “Brasileirinho” e “Tico-tico no fubá”, por exemplo, não teriam sido o que são se não existisse Ademilde Fonseca.

Mas o que ela tem a ver com o Teatro Paiol? Ora, em uma das parcerias impossíveis, em 1980, foram reunidos o diretor de teatro José Celso Martinez Corrêa e o cantor Lúcio Alves. O primeiro falou pelos cotovelos e o segundo só abriu a boca para deixar sair seu maravilhoso canto. Acontece que na plateia estava Ademilde e ela foi reconhecida por Lúcio, seu admirador, que a convidou para descer ao palco — lembre-se estamos no Paiol — e ela então cantou algumas canções, incluindo “Carinhoso”, mostrando que também sabia cantar devagar e sendo acompanhada por toda a plateia embevecida.

“Carinhoso” era a canção preferida de Nireu Teixeira, que viria a se tornar o meu sogro, e que também acabou ficando amigo de Millôr Fernandes, com o qual trocava livros e correspondências, além de alguns goles de uísque, como aquele derramado por Vinícius de Moraes para batizar o Teatro do Paiol.

Nireu foi o mais Millôr dos curitibanos e graças à filha dele, a Nancy, que eu aprendi outro ensinamento do pensador carioca: ler placas de automóveis trocando os números por letras. É fácil, mas essa é uma outra história.

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Parabéns Curitiba e Teatro Paiol. Adeus Millôr e Ademilde.