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Um erro emocional, um acerto literário e uma crítica intempestiva
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Nesta quinta pela manhã estava lendo o jornal literário Rascunho de março e me deparei com uma crítica do livro Um erro emocional, do Cristovão Tezza. Foi quando lembrei que no longínquo ano passado, há quase seis meses, eu também escrevi uma crítica do mesmo livro. Passei para o Caderno G, que como havia acabado de publicar uma outra apreciação sobre a mesma obra, decidiu esperar um pouco para aproveitar aquelas minhas mal traçadas. O tempo passa, o tempo voa, e tanto eles quanto eu esquecemos daquele texto. Até esta manhã. Lembrado e recuperado, aqui vai a minha crítica ao livro Um erro emocional, do Cristovão Tezza, que decido publicar de forma intempestiva:

Um erro emicional e um acerto literário


Cristóvão Tezza confessa ter tido medo de escrever após a consagração

Há os que falam sem pensar e os que pensam tanto que não conseguem falar. Um dos melhores representantes dos calados brasileiros, o escritor Luis Fernando Veríssimo, já explicou certa vez que, para ele – ou para nós, os calados, porque me incluo nesta categoria -, é muito difícil pensar e falar ao mesmo tempo. Por isso escolheu pensar mais e falar menos. Faço essa introdução para falar (escrever) sobre o livro Um erro emocional (Record, 2010 – 191 páginas), de Cristovão Tezza, a mais recente obra deste que é um dos mais premiados escritores brasileiros.

O romance se passa em poucas horas e poucos diálogos. Todo o grande recheio do livro permenece na cabeça dos dois personagens, quase nunca se transformando em palavras que voam da boca para fora.

Fluxo de consciência é o nome que se adotou para esse encontro entre a psicologia e a literatura, em que se narra o que se passa na cabeça dos personagens, o pensamento que flui, e não a ação. O termo foi cunhado por William James (The Stream of Consciousness. 1892). O maior exemplo dessa técnica seria James Joyce, em “Ulisses“, mas Dostoievski e outros russos, tais como Tolstói e Tchecov também o usavam. E a técnica se incorporou definitivamente à literatura universal.

Tezza leva-a ao extremo neste seu livro. O diferente é que ele põe isso em meio a um diálogo. Narra a viagem irracional, o pensamento que flui não se sabe vindo de onde, que se embola com as considerações racionais e tudo isso antes que as palavra se formem na boca. Todo aquele turbilhão, aquela sucessão de estados mentais no fluxo do pensamento antes que se tornem palavras ditas.

Não se pode dizer tudo o que se pensa. É como se existisse um Raskolnikov dentro de cada cérebro pronto para matar a machadadas esses pensamentos antes que eles fluam e reverberem as cordas vocais. Um erro emocional começa com um parágrafo de 16 linhas, cheio de parênteses e travessões, uma confusão de narradores, sentimentos e pensamentos antes que surja a primeira das poucas frases que compõem o encontro de Beatriz e Donetti:

– Eu me apaixonei por você.

Mas não foi isso exatamente o que o escritor Donetti disse. A gente fica sabendo, não pela boca dele, mas pelo pensamento-divagação de Beatriz, que a expressão completa teria sido: “Cometi um erro emocional. Eu me apaixonei por você”. A frase “Cometi um erro emocional” é a primeira de todo o livro. Porém, está construída na cabeça de Beatriz, dita sem travessão, sem aspas. É a personagem pensando que essa seria a maneira como contaria aquele encontro para uma suposta amiga.

Parece confuso, caro leitor? Pois é Cristovão Tezza no auge de sua técnica autoral, que já vinha sendo esboçada em livros antes de O filho eterno.

Déficit de atenção

O livro todo é assim. O texto cheio de parênteses, travessões, pensamentos entrecortados, amontoados, sobrepostos, interrompidos … É como se os personagens sofressem de déficit de atenção. Têm dificuldade de fixação, de manter a atenção em uma só coisa.

Beatriz e Donetti vivem um pequeno momento de encontro em um apartamento onde só estão os dois e por poucos instantes. No entanto o passado os atropela assim como invade a narração, os personagens e o próprio leitor.

O livro abre com a seguinte epígrafe: “A memória queima. Longe dela, brilha o deserto”. Seria um texto retirado de um livro do próprio Paulo Donetti. Dentro, nas páginas do livro, o texto da epígrafe aparece como uma poesia:

“A memória queima, até
restar o osso duro
irremovível e áspero.

Fora dela, brilha o deserto.”

Paráfrase literária, intertextualidade, sobreposição – palavras que o pobre leitor cansado não precisa se aprofundar, mas que mais uma vez expõe a técnica de Tezza de misturar as coisas. Quem é o narrador que se funde com a voz da consciência? Onde está a verdade? Estaria no que é dito ou no que é pensado e não dito? As coisas se embaralham.

O passado sempre nos persegue. Quando encontramos uma pessoa que nos interessa, misturamos esses passados e isso é bastante complicado. O próprio Tezza faz mais misturas. Os personagens Paulo Donetti e Beatriz já haviam sidos usados por ele em outros trabalhos. Como no livro, é o passado que atropela o presente.

E a interação dos dois personagens é toda truncada por lembranças, racionalizações e devaneios. Ha sempre um passo atrás. A entrega nunca se concretiza.

Os personagens, mesmo a mulher, bem mais prática que o escritor, vivem uma desconexão com o mundo real.

Momentos esgarçados

Há momentos da narrativa em que o fio da meada fica mais esgarçado, quase se rasga. Quando os personagens, no meio das divagações, viajam por memórias mais distantes pela primeira vez – a morte da família dela, o tapa do pai na mãe dele -, nestes momentos, a narrativa engasga e como que tosse um lugar comum na cara do leitor, que sente o desconforto no meio de texto tão brilhante. Mas o momento é breve e logo retomamos o prazer da leitura. Um prazer proporcionado não exatamente por uma boa história pois pouca coisa acontece no ecnotro. É mais pela saborosa forma de construção. Um prazer para poucos pois é totalmente literário. E literatura é artificialidade, é um artesanato frio, mental.

Na página 57, Donetti afirma: “A literatura é um objeto de contemplação, até o sentimento que ela exala é frio como uma peça de mármore, não se aproxime dela, ela nos diz, não se deixe substituir por mim.”

O livro é a mistura desta peça fria, de mármore, da literatura, com uma boa dose de tensão que aparece na forma de escrever e no encontro claudicante dos personagens. Terá futuro aquele casal que se pretende formar? Há também uma tensão sexual, cheia de referências literárias.

Mas a grande questão – e também tensão -, surge com um personagem constante da literatura de Cristovão Tezza – tanto quanto Curitiba – que é o deslocamento, a inadequação. Não é fácil ser um personagem de Tezza. O escritor maltrata seus filhotes literários. Eles pouco conseguem se relacionar socialmente. São travados. E os próprios Beatriz e Donetti, além do narrador, vivem nos dizendo isso. Quer alguns exemplos? Pois aí vão:

“Tudo o que não se disse é que era importante” – Página 58

“Eu sou daqueles homens que jamais conseguem viver a própria vida” – Página 65

“Quando escrevo não me perco – o difícil é colocar a cabeça para fora, sair do papel, ocupar o espaço, tocar em alguém.” – Página 112

“Talvez um homem, qualquer homem, só consiga ser realmente bom por escrito” – Página 179

E assim seguem os personagens “Tezzianos”, enquanto o livro continua com parágrafos cheios de travessões, de parênteses, de pensamentos que se sobrepõem e vão ficando mais confusos, mais bêbados, talvez pela ação do vinho consumido no apartamento de Beatriz.

De uma forma literária brilhante, o autor vai puxando o fio da meada com cuidado e nos traz sua história. Um erro emocional é CristovãoTezza em sua escrita mais madura.

O filho eterno, o livro anterior, foi um dos mais premiados da história recente da literatura brasileira. Fazer um livro assim, depois de tamanha aprovação crítica, é sempre um desafio ao escritor. Pois não prejudicou e, ao contrário, parece ter feito bem a Tezza. O sucesso não o travou e ele parece estar mais livre para ousar. Continua maltratando seus personagens, para o bem da literatura e do leitor.

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