Pela primeira vez desde 2017, quando comecei esta coluna, vou expressar um posicionamento que vai destoar da minha habitual visão liberal com relação às políticas econômicas: vou defender mais regulação e tributação para um setor especifico – as gigantes mundiais de tecnologia.
Conforme expus no meu artigo anterior (“O Brasil pós-‘ciclo da soja’: preparando a próxima etapa“), o modelo de desenvolvimento baseado em exportação de produtos manufaturados a partir de mercados com mão de obra barata está sofrendo transformações. A tecnologia digital está possibilitando a alocação da produção regionalmente, mais próximo dos mercados consumidores, reduzindo os fluxos de comércio internacional. Em paralelo, cresce a exportação de serviços, com uma forte concentração nas mãos das gigantes transnacionais de tecnologia.
No último dia 25 de fevereiro, assisti a uma palestra do Professor da Columbia University e duas vezes prêmio Nobel Joseph E. Stiglitz, proferida na sede do Banco Mundial aqui em Washington. Em sua apresentação, intitulada “Tecnologias digitais e o novo pensamento sobre o desenvolvimento inclusivo”, o renomado economista questiona se as tecnologias digitais tornarão ainda mais difícil a redução da distância, em termos econômicos, entre os países em desenvolvimento e os países avançados.
Ao reconhecer o importante papel das tecnologias digitais em criar múltiplas novas oportunidades nos mais diversos setores: financeiro, governo eletrônico, acesso ao conhecimento, conectividade global etc., Stiglitz observa vários impactos negativos das transformações que estão ocorrendo.
O economista explica que no segmento de tecnologias digitais a auto-regulação não funciona. A tendência que estamos observando é a monopolização do mercado de tecnologias digitais nas mãos de poucas “superempresas”. Essa concentração do poder econômico gera várias distorções: impede a entrada de concorrentes menores, promove a desigualdade de expressão e de representação nas plataformas digitais (que foram concebidas como ambientes democráticos, mas na prática não são, porque quem tem mais poder econômico pode fazer uso de recursos para artificialmente aumentar sua penetração) e possibilitando manipulações de opinião e influências políticas, além de riscos de invasões de privacidade.
Há, também, uma grande influência negativa na geração de empregos formais. A chamada “gig economy“, que surge a partir das diversas plataformas digitais, estimula a criação de trabalhos temporários, sem vínculo empregatício e sem direito a benefícios sociais. “Fazer um bico” ou um trabalho rápido por um curto período de tempo torna-se fácil, mas o emprego formal e seguro fica cada vez mais escasso. Cresce a desigualdade em termos de salários e renda. Essa tendência é ainda mais agravada com a expansão da robotização e da inteligência artificial.
Contudo, o maior problema dos países em desenvolvimento, na visão de Stiglitz, é a dificuldade que seus governos enfrentam para cobrar impostos sobre os rendimentos das gigantes de tecnologias digitais gerados em seus territórios.
Essas empresas em sua grande maioria são sediadas em outros países avançados e realizam intenso planejamento tributário para recolher seus impostos em paraísos fiscais ou em países com menor tributação – não é à toa que em 2018 a Apple foi obrigada, pela União Europeia, a devolver parte dos benefícios fiscais obtidos irregularmente na Irlanda.
Conforme dados apresentados por Stiglitz, as superempresas de tecnologias digitais têm um custo marginal (ou o acréscimo total dos custos de produção) muito baixo, quando se expandem para os mercados em desenvolvimento. As plataformas digitais já existem, e incluir mais mil, ou até vários milhões de usuários, gera custos muito pequenos. E, consequentemente, os lucros são exorbitantes.
Basta pensarmos: quanto custa, para o Google, o Twitter ou o Facebook (para citar apenas algumas), incluir um anúncio de uma empresa brasileira? Praticamente nada: essas empresas podem cobrar somas exorbitantes dos anunciantes brasileiros, tendo um gasto mínimo para a divulgação do anúncio aos milhões de usuários do nosso país.
Em termos econômicos, essas empresas recebem “rents“, ou pagamentos pelo uso de tecnologia, que não geram qualquer tipo de tributo aos países onde os serviços são prestados.
Essa distorção, constata Stiglitz, foi criada pelo TRIPS, acordo multilateral sobre aspectos comerciais dos direitos de propriedade intelectual (Agreement on Trade-Related Aspects of Intellectual Property Rights) e acordos posteriores de comércio e investimentos assinados bilateralmente, que preveem a repatriação de pagamentos pelo uso de direitos de propriedade intelectual para os países de origem da tecnologia.
Por conta dessa reserva de mercado, os países em desenvolvimento sofrem os efeitos negativos descritos acima, mas não participam da arrecadação de impostos sobre os lucros gerados em seus mercados. E as externalidades positivas de implementação de novas tecnologias (ou o “efeito de transbordamento”) são muito reduzidas, já que as superempresas têm pouca presença física: centros de pesquisa, de capacitação etc. nos países onde estabelecem suas plataformas.
Stiglitz defende o papel importante dos governos de países receptores de tecnologias no sentido de regulamentar e direcionar a inovação a partir das plataformas digitais para garantir um maior benefício econômico e o bem-estar da sociedade. Por exemplo, no lugar da inovação que simplesmente busca substituir o trabalho menos qualificado pela automação, estimular a “inovação ambiental”, que busca produzir mais com menos e evitar desperdícios. Promover a inovação que estimula mais inclusão social.
A inovação gera rendimentos. Por terem um custo quase zero para os donos das tecnologias, e por não gerarem outras externalidades positivas, esses rendimentos podem e devem ser tributados, inclusive em nível elevado, sem criar distorções, conforme Stiglitz. Os tributos arrecadados podem ser usados para garantir um crescimento inclusivo.
Ao mesmo tempo, é preciso reforçar as regras de concorrência e de propriedade intelectual. Stiglitz defende, inclusive, o uso de licenças compulsórias em casos específicos.
A respeito do comércio eletrônico, Stiglitz defende que as vendas on-line devem ser tributadas mais pesadamente do que as vendas por lojas físicas, porque lojas físicas geram empregos distribuídos por todo o território do país e são importantes para as comunidades, até pelo aspecto de convivência social – externalidades positivas que as lojas on-line não propiciam.
O que o Brasil pode aprender com isso? No momento em que o país vive a urgente necessidade de reduzir os gastos públicos e, ao mesmo tempo, aumentar a arrecadação para investir em áreas estratégicas como a saúde, a educação, a infraestrutura etc., existe a possibilidade de repensar a nossa política industrial e regulatória voltada para a inovação.
Direcionar melhor a inovação e distribuir melhor os rendimentos gerados pelas tecnologias digitais, evitando distorções e garantindo emprego e o bem-estar da população. É algo a estudar seriamente.
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