Há poucos dias, a China realizou o segundo fórum no âmbito da sua notória “Belt and Road Initiative – BRI” (que vem sendo traduzido, pela mídia brasileira, como a “Iniciativa do Cinturão e da Rota”). Apesar do pequeno número de países participantes (apenas 37) e da pouca presença de chefes de estado, o encontro chamou a atenção mundial. E o comunicado conjunto assinado no final do fórum foi emblemático em vários aspectos.
Lançada há seis anos com ambiciosos projetos na área de infraestrutura, essa iniciativa se tornou uma bandeira da política externa da China e já abrange acordos com 125 países e 29 organizações internacionais, conforme dados do portal oficial da BRI. O alcance geopolítico impressiona. Além da Ásia e da Europa, a nova “rota da seda” chega à África e, mais recentemente, à América Latina (Chile e Peru, por exemplo, anunciaram sua adesão formal à BRI).
Não são apenas projetos de conectividade. O escopo atual é muito mais abrangente. O comunicado conjunto prevê compromissos de coordenação de políticas públicas, de preservação de meio ambiente, de redução de protecionismo comercial, de integração financeira, de cooperação tecnológica e na área digital, de facilitação de comércio e de movimentação de pessoas, além de inúmeros outros temas. A linguagem parece um contraponto aos posicionamentos atuais dos Estados Unidos. A China se projeta defendendo o multilateralismo e a globalização.
Nos últimos anos, a China chegou a anunciar planos de investir cerca de US$ 1 trilhão entre 2017 e 2021, construindo conexões marítimas e terrestres: ferrovias, estradas, hidrovias, gasodutos e linhas de transmissão de energia. Esse valor é próximo ao que a China possui hoje em títulos do governo americano (cerca de US$ 1,13 trilhão), como suas reservas cambiais. O número pretendido é sete vezes maior do que o montante que os Estados Unidos investiram, em valores atualizados, no Plano Marshall, que reconstruiu a Europa após a Segunda Guerra Mundial.
O gigantismo da ambição chinesa causa desconfiança e preocupações tanto da comunidade internacional quanto dentro do próprio país. O segundo fórum foi marcado por protestos e questionamentos por parte da sociedade civil da China.
A maior parte dos recursos é desembolsada via empréstimos aos governos dos países participantes, com juros ou sem juros. Há, também, investimentos diretos. Os dados sobre os empréstimos são pouco transparentes. No portal oficial, não há informações sistematizadas.
Já com relação aos investimentos estrangeiros diretos, o portal informa que a China transferiu mais de US$ 90 bilhões para projetos nos países do BRI no período de 2013-2018. Na semana passada, foram assinados acordos que preveem mais US$ 64 bilhões em investimentos.
Os projetos são assinados com muita pompa e contam com ampla divulgação na mídia. Mas a iniciativa enfrenta muitas dificuldades. Várias obras anunciadas não saíram do papel ou estão suspensas, e há casos de desistência de países como Paquistão, Malásia, Bangladesh e alguns outros, de continuar projetos negociados ou até já iniciados. Há em curso uma ampla reavaliação e renegociação de obras.
A pouca transparência e o crescente endividamento dos países participantes têm provocado acusações de que a China pratica uma “debt-trap diplomacy” (diplomacia da armadilha do endividamento), seguindo suas ambições políticas, econômicas e até militares, contaminando a situação econômica e ameaçando a soberania dos países participantes da BRI.
Nessa chuva de acusações e avaliações negativas, achei curiosa a postura mais ponderada da revista The Economist. Um recente artigo diz que não há evidências de que a China esteja agindo de má fé nos investimentos em infraestrutura: “apesar de os empréstimos serem preocupantes, eles não são mal intencionados. O problema é o superdimensionamento”.
A The Economist cita uma pesquisa feita pela Johns Hopkins University quando afirma que houve apenas um caso, dentre mais de 3.000 mil obras analisadas, que poderia caracterizar prática predatória por parte da China: Em 2017, o Sri Lanka, que encontrava dificuldades financeiras para pagar um empréstimo chinês, acabou transferindo o porto Hambantota para uma estatal chinesa através de um contrato de leasing por 99 anos.
Em dezenas de outros casos de dificuldades, a China renegociou as condições, reduzindo os valores a serem pagos e facilitando a quitação de dívidas. Então, conforme a The Economist, a prática desleal “foi uma exceção e não a regra”.
O problema não é a má fé, mas a falta de preparo na estruturação de projetos, que são superdimensionados e caríssimos. A ausência de estudos sérios e de preparação profissional de projetos, além da falta de uma avaliação competente de risco financeiro e de credibilidade do pagador, faz com que os orçamentos de obras sejam superestimados e os juros cobrados, muito altos. Como resultado, há muitas obras que não são viáveis financeiramente.
Isso é especialmente grave no caso de países pobres e em situação financeira vulnerável. E o endividamento de alguns países já é insustentável. Conforme dados da The Economist, a dívida pública do Paquistão, que hoje é o maior tomador de empréstimos chineses, já chega a 70% do PIB do país e deve ultrapassar 80% até 2024 com as obrigações financeiras contraídas com a China. Há vários outros países em situação parecida ou até pior.
A The Economist aponta para um outro problema: a ambição da China na concepção da BRI. Estudos recentes do Banco Mundial demonstram que os projetos de transporte no âmbito do cinturão poderiam elevar o PIB mundial em 3%, que é um impacto maior do que o que poderia ser esperado com uma ampla redução de tarifas por meio de acordos de livre comércio.
A conectividade global que facilita o comércio e o desenvolvimento virou o foco da atuação política da China nos últimos anos. Em alguns casos, a dimensão dos projetos beira a obsessão.
O Brasil nunca aderiu à iniciativa. Apesar disso, chegou a receber algumas propostas ambiciosas, como por exemplo, a de financiar a construção de uma ferrovia bioceânica, que atravessaria o território brasileiro, conectando os oceanos Atlântico e Pacífico – projeto antigo, mas que nunca saiu do papel. A viabilidade ambiental e financeira dessa obra é duvidosa.
Vale mencionar também o Fundo Brasil-China para Expansão da Capacidade Produtiva, no valor de US$ 20 bilhões (dos quais US$ 15 bilhões seriam da China), criado em 2015 para fomentar investimentos em infraestrutura e em outras áreas econômicas. O Brasil chegou a escolher projetos que poderiam ser financiados pelo fundo, mas nenhum deles foi viabilizado até agora.
A China insiste que a BRI foi criada com a intenção de ajudar e que os países podem escolher participar ou não. Nenhum deles foi forçado a aderir. Sendo de participação voluntária ou não, a iniciativa traz riscos para a estabilidade financeira não só dos tomadores, mas da própria China, cujos bancos correm o risco de ter uma grande exposição a créditos podres.
Talvez por isso a China esteja ampliando o escopo da iniciativa. O cinturão hoje não se limita aos projetos de infraestrutura física. É muito mais abrangente. Com essa reformulação, a participação dos países nessa iniciativa passa a trazer mais vantagens, algumas inesperadas. O exemplo que me chamou a atenção foi que a China assinou acordos sanitários e fitossanitários com os países da BRI dando acesso ao seu mercado a cerca de 50 produtos agropecuários importados.
O “novo” Cinturão, ao ir além das obras de infraestrutura, pode significar a aproximação e a remoção de barreiras comerciais. Ao mesmo tempo, falando da China, não podemos esquecer que não se trata de um país democrático com economia de mercado e princípios liberais. Nem fechar os olhos para as políticas domésticas autoritárias ou para a expansão militar.
Nesse sentido, a China não está pronta para substituir os Estados Unidos e a União Europeia na liderança global. Mas vamos dar o benefício da dúvida em relação ao Cinturão: pode ser que a China esteja pecando por excesso, não por maldade.
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