O pivô do processo de impeachment contra o presidente dos Estados Unidos Donald Trump, a Ucrânia, toma o noticiário das últimas semanas. Mas mesmo sendo um assunto quente, não vou falar aqui do impeachment. Houve acontecimentos muito mais marcantes, em grande parte ofuscados pela investigação do caso Trump.
No dia 1º, o presidente ucraniano Volodymyr Zelenskiy assinou um acordo com os separatistas, a Rússia e os observadores europeus sobre a realização de eleições locais em Donetsk e Luhansk, que é o primeiro passo para a conclusão da negociação da paz no leste da Ucrânia. Esse foi o maior avanço desde a assinatura do segundo acordo de Minsk em fevereiro de 2015 (após o colapso do primeiro acordo, assinado na capital da Belarus em setembro de 2014).
Segundo maior país da Europa, após a Rússia, a Ucrânia foi uma grande potência agrícola, energética e industrial na época sovietica. Durante uma década após a dissolução da União Soviética (1991), a economia ucraniana perdeu mais da metade do seu valor. Conforme dados do Banco Mundial, o crescimento só foi retomado no período de 2000 a 2008, a uma taxa média anual de 6%, mas a crise financeira mundial atrapalhou a consolidação da expansão econômica e o país voltou a estagnar.
Apesar de vastos recursos naturais e do chamado chernozem, uma terra preta riquíssima em matéria orgânica, a Ucrânia não prosperou da forma que merece, porque sofre do mesmo mal que muitos outros países que fizeram parte da União Soviética: a corrupção. Por conta desse mal, não foi possível implementar as reformas políticas e econômicas necessárias para a retomada de crescimento.
Além disso, a Ucrânia pagou um preço muito alto por escolher se distanciar da Rússia. Em 2014, o país assinou um acordo de associação com a União Europeia, ao invés de se juntar ao bloco liderado pela Rússia (que hoje se tornou a União Econômica Eurasiática, formada pela Rússia, Belarus, Cazaquistão, Armênia e Quirguistão).
O acordo de associação, visto como o primeiro passo no processo de aproximação com a UE – buscando eventualmente se tornar membro do bloco europeu – desencadeou a queda do governo do ex-presidente Viktor Yanukovych e o início do conflito armado com a Rússia, há cinco anos. A Rússia anexou a Crimeia, após o referendo na península a favor da separação da Ucrânia em março de 2014. E logo começou a apoiar os separatistas que tomaram o controle de Donetsk e de Luhansk, na região de Dombas, no Leste da Ucrânia, mesmo nunca tendo reconhecido formalmente o seu envolvimento militar no território ucraniano.
A guerra deixou a economia ucraniana ainda mais fraca. Conforme os registros do Fundo Monetário Internacional, o PIB da Ucrânia caiu 16,4% no período 2014 - 2015. Já nos últimos três anos, houve uma pequena recuperação, com o crescimento médio anual de 2,75%. A previsão para este ano, segue no mesmo patamar.
O conflito armado que perdura há cinco anos já levou à morte 13 mil pessoas e impede a economia ucraniana de crescer. O país atrai pouquíssimos investimentos estrangeiros, não consegue financiamento no exterior e o comércio está patinando. A Ucrânia hoje se tornou o país mais pobre da Europa em termos de PIB per capita. É mais que natural nesse cenário que o governo ucraniano se empenhe para terminar a guerra.
A Fórmula de Steinmeir é o caminho para a paz
O acordo desta semana significa que a Ucrânia concorda com a implementação da chamada "Fórmula de Steinmeier". Essa formula é o plano proposto em 2015 pelo então ministro de Relações Exteriores e hoje presidente da Alemanha, Frank-Walter Steinmeier, que possibilita colocar em prática os acordos de Minsk.
A Fórmula do Steinmeir prevê a concessão de status especial com autonomia administrativa às regiões de Donetsk e Luhansk, após a realização de eleições locais com a presença de observadores da Organização para a Segurança e Cooperação Europeia (OSCE). Conforme exigido pelos acordos de Minsk, o parlamento da Ucrânia já aprovou uma lei que estabelece o status especial dessas regiões, que deve entrar em vigor no momento da realização de eleições.
A Fórmula detalha como seriam realizadas as eleições (com a participação de partidos políticos ucranianos e de pessoas deslocadas em função do conflito, bem como com o acompanhamento de mídia) e condiciona a concessão da autonomia ao relatório final da OSCE, declarando as eleições como livres e justas.
O acordo sobre as eleições locais assinado esta semana é essencial para a reunião do chamado “Quarteto da Normandia”, que foi criado em 2014 para solucionar o conflito entre a Rússia e a Ucrânia. É composto, além dos próprios envolvidos, pela França e Alemanha. O quarteto deve se reunir em Paris nas próximas semanas.
O impasse até agora foi causado pela insistência da Rússia em seguir com a Fórmula de Steinmeier, garantindo a realização de eleições. A Ucrânia concordou, aprovando a desmilitarização da região, com a retirada das tropas ucranianas e de grupos armados, o desmonte de fortificações e de campos minados, e seguindo com a organização das eleições.
Solução do conflito e retirada de sanções
A implementação do processo da paz não será fácil. O presidente ucraniano enfrenta uma grande resistência interna, inclusive com protestos nas ruas, com alegações de que a Rússia estaria ganhando mais com a solução.
O acordo, por enquanto, não envolve a Crimeia, que é uma história a parte. A península pertenceu à Rússia no período de 1783 a 1954, quando, no contexto da União Soviética – portanto num periodo em que Rússia e Ucrânia integravam um mesmo país – foi subordinada administrativamente à Ucrânia. A base da marinha soviética sempre foi na Crimeia, na cidade de Sevastopol. Quando a União Soviética foi dissolvida em 1991, a negociação mais difícil foi sobre a divisão da marinha, que só foi concluída em 1995. Como resultado da negociação, a Rússia manteve a base da sua marinha em Sevastopol.
Conforme o censo da Ucrânia de 2001, 58% da população da península era formada por russos, enquanto os ucranianos representavam 24%, os tártaros, 12% e o restante, outras etnias.
Na anexação da Crimeia pela Rússia, as questões históricas e culturais se somaram aos interesses estratégicos geopolíticos e econômicos em relação ao acesso ao Mar Negro (que dá passagem para o Mar de Azov, Mar Mediterrâneo e Oceano Atlântico).
As pessoas que, como eu, nasceram na Rússia, quando pensam na relação entre a Rússia e a Ucrânia, lembram dos livros de história. O primeiro estado eslavo nasceu, no século IX, no território que hoje pertence em parte à Rússia e em parte à Ucrânia. Os historiadores chamam aquele antigo estado de “a Rússia de Kiev” (Kievskaya Rus), porque a capital era em Kiev (que hoje é a capital da Ucrânia).
As línguas são muito parecidas. Os laços sempre foram muito fortes. Muitos ucranianos moravam na Rússia e vice-versa. Aliás, há histórias de famílias muito curiosas. Uma amiga ucraniana conta que os dois tios dela integravam o exército da União Soviética, só que um servia na Rússia e outro, na Ucrânia. Com a dissolução, um recebeu passaporte russo e o outro, ucraniano, continuando servindo em países diferentes.
A União Europeia, os Estados Unidos e vários outros países não reconhecem a anexação da Crimeia pela Rússia como legítima. Não está claro se o Quarteto da Normandia vai tratar dessa questão e se a Ucrânia e a Rússia vão conseguir chegar a uma solução no caso da Crimeia. O que está claro é que a Rússia não está disposta a devolver a península.
A tão esperada paz na Ucrânia poderá levar à retirada das sanções econômicas impostas pela União Europeia, Estados Unidos, Canadá, Austrália e Noruega contra a Rússia, bem como à retirada pela Rússia de contra-sanções, na forma do embargo às importações de produtos alimentícios desses países. Esse embargo levou à queda de 31,2% nas importações russas de alimentos nos últimos 5 anos (de US$ 43,3 bilhões em 2013 para US$29,8 bilhões em 2018).
Analistas estimam que as sanções causaram uma redução anual de cerca de 0,2% do PIB da Rússia. Além de sanções contra determinadas pessoas e empresas, foram impostas restrições que afetaram os setores de energia e de defesa, bem como o acesso do país ao financiamento externo. A Rússia também foi excluída do grupo dos países mais influentes (hoje, G7) e do Conselho da Europa, que une 47 países europeus.
Hoje, uma rápida solução do conflito é defendida por vários países europeus, mas principalmente pela França. Os Estados Unidos também apoiam a questão. A volta da Rússia ao G7 é vista como importante, principalmente no contexto da instabilidade no Oriente Médio.
No momento em que as previsões da Organização Mundial do Comércio apontam para um crescimento do comércio internacional este ano no nível mais baixo da última década e quando várias economias importantes estão desacelerando ou entrando em recessão, uma possível solução para o conflito no Leste Europeu seria um sinal de alívio. Além de proteger a vida das pessoas, o fim da guerra possibilitará a normalização do ambiente econômico e empresarial. Vamos torcer para dar certo.
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