As pessoas como eu, que lidam com o comércio internacional, comentam que não precisam mais explicar aos parentes e amigos o que é exatamente o nosso trabalho. A escalada da guerra comercial protagonizada pelos Estados Unidos garante ampla cobertura do tema pela mídia e pelas redes sociais.
A palavra "tarifa" já não soa nada estranho. Parece ser a palavra mais usada pelo presidente Donald Trump. "Eu sou o homem-tarifa", declara ele.
74 anos após a Segunda Guerra Mundial, uma nova guerra está tomando proporções cada vez mais amplas. Os altos impostos de importação – as tarifas – são usados como uma arma em temas que vão muito além do comércio: subsídios governamentais, políticas industriais, transferência de tecnologia, segurança de dados, excesso de capacidade produtiva, política cambial, imigração e até o aumento de concorrência externa em determinados setores.
A tarifa se mostra uma verdadeira arma de destruição em massa, porque interrompe as cadeias de valor que estão funcionando bem há anos. Destrói a confiança e atrasa os investimentos. Destrói empregos e tributa os consumidores.
É uma arma que contamina a previsibilidade e, por isso, pode ser letal para os negócios em muitos e muitos países. É usada numa guerra, onde não há vencedores. E, como em qualquer guerra, a população é a parte mais prejudicada.
Vale tudo no amor e na guerra?
As negociações comercias que os Estados Unidos conduzem não são mais negociações, são ameaças. Os acordos não são mais acordos, são, em muitos casos, apenas uma trégua, por um tempo, até surgirem novas ameaças. Muitos brincam que a paz dura apenas até o próximo tuite do presidente americano.
Os Estados Unidos não buscam mais os tradicionais acordos de livre comercio com base em reciprocidade. Pelo contrário, procuram persuadir o outro país a sucumbir às suas demandas, fazer concessões e abrir mão de suas políticas nacionais sem receber muito em troca.
Há mais uma peculiaridade. A metralhadora tarifária dos Estados Unidos ataca os mais diversos países sem diferenciar entre os tradicionais aliados e rivais políticos. E os acordos alcançados não valem muito. Os Estados Unidos se sentem à vontade para mudar suas demandas, mesmo tendo antes alcançado um entendimento (como foi o caso do México, por exemplo, em que pouco tempo depois de assinar um acordo, Trump ameaçou introduzir novas tarifas se o pais não resolvesse questões migratórias).
Muitos e muitos comentam que os Estados Unidos não estão dispostos a negociar. Eles demandam. Ou melhor, mandam. E querem que os outros países obedeçam. O Presidente americano Donald Trump resumiu as razões e os objetivos de suas táticas de guerra numa sequência de tuites desta semana:
"Quando você é um grande cofre que outros países roubam por muitos anos (em um nível que é difícil de acreditar), Tarifas são um ótimo instrumento de barganha, são excelentes fontes de receita e, o que é mais importante, é um poderoso caminho para conseguir que as empresas venham para os EUA e que aquelas empresas que nos deixaram, preferindo outras terras, voltem para casa.
Nós perdemos de forma estúpida 30% dos negócios automotivos para o México. Se as tarifas mais altas entrassem em vigor, eles todos teriam voltado e não teriam continuado. Mas, estou feliz com o pacto que eu fiz com o México. Se o México entregar (o que eu acho eles vão fazer). A maior parte do acordo com o México ainda não foi revelada! China é parecida, exceto que eles deixam a moeda desvalorizar e subsidiam empresas para reduzir o efeito da Tarifa de 25%. Por enquanto, o efeito para o consumidor é pequeno. Empresas vão se mudar para os EUA."
A retórica de guerra
Essa narrativa do presidente Trump se enquadra naquilo que a revista britânica The Economist chamou de um "mundo pós-fatos" ("post-fact world"), quando os fatos e evidências são ignorados na construção de uma retórica populista. Com esse discurso, Trump busca aceitação pela parte mais pobre da população americana. E consegue!
Será que todos os outros países trapaceiam e vivem às custas dos Estados Unidos? Com algumas poucas exceções, a resposta é um contundente não. Não cabe fazer esse tipo de acusação de forma generalizada.
Além disso, quando o presidente americano quer taxar as importações provenientes do México, ele precisa levar em consideração o fato de que essas importações têm 40% de conteúdo americano embutido. Os produtos do setor automotivo atravessam as fronteiras dos dois países múltiplas vezes até serem transformados em um automóvel pronto, que é depois vendido em um dos dois mercados ou no exterior. A imposição de tarifas nesse caso teria um efeito multiplicador, já que a tarifa incidiria todas as vezes que o produto cruzasse a fronteira, tributando pesadamente não apenas a indústria mexicana, mas também a americana.
Os empregos e as fábricas vão voltar? Se as fábricas voltarem, os custos de produção vão aumentar. Por conta disso, as empresas, provavelmente, não poderão competir no exterior e vão produzir apenas para o mercado interno e vender por um preço maior. Os consumidores americanos pagarão esse preço maior, ao invés de ter acesso aos produtos mais baratos. O Brasil que viveu a época de substituição de importações sabe como essas políticas são prejudiciais para a economia e para a população.
Os acordos sob ameaças funcionam? No caso do México, aparentemente funcionou. O país concordou em reforçar os controles de imigração em troca à retirada de tarifas. Já no caso da China, a situação é bem diferente. É a segunda maior economia mundial e não depende tanto dos EUA quanto o México. A China e os Estados Unidos estão muito longe de alcançar um acordo.
A cúpula do G20 servirá de palco para várias negociações
Tudo indica que o momento decisivo será a provável reunião entre os presidentes Trump e Xi Jinping, nos próximos dias 28 e 29, às margens da cúpula do G20 (grupo das 20 principais economias do mundo), no Japão. Se não houver acordo, Washington passará a tributar todas as importações de produtos chineses com a alíquota de 25%. Será um choque muito grande para o comércio bilateral, já que a tarifa média que os Estados Unidos aplicavam antes do início do conflito era de 3,4%.
A falta de acordo aprofundará o decoupling (separação) entre as duas economias que já está em curso na área de tecnologia e inovação.
Os próximos da lista são a União Europeia e o Japão. Esses países já sofrem os efeitos de elevadas tarifas para o aço e alumínio, impostas pelos Estados Unidos no ano passado. Agora, os Estados Unidos ameaçam aumentar as tarifas para os produtos do setor automotivo provenientes desses países, dando prazo até novembro deste ano para achar uma solução negociada.
Os europeus, que antes estavam dispostos a fechar uma ampla Parceria Transatlântica, agora falam em um acordo restrito a produtos industriais, sem o setor agrícola. Mesmo assim, seria um acordo de livre comércio, com base nas regras da Organização Mundial do Comércio (OMC), já que conforme os cálculos deles, a agricultura representa menos de 10% do comércio bilateral com os Estados Unidos (assim, seria possível alcançar a “cobertura substancial da totalidade do comércio” exigida pela OMC para esse tipo de acordo). Os EUA discordam do escopo. Trump está insistindo em incluir vinhos e outros produtos agrícolas.
Há um outro complicador. A França tomou uma postura firme de recusar acordos de livre comércio com os países que não fazem parte do Acordo de Paris sobre o Clima. Como os EUA se retiraram do acordo no começo da administração Trump, isso pode criar empecilho para alcançar um entendimento.
Outra frente de batalha, que reúne muito mais países, é o impasse quanto à reforma da OMC. Em busca de mudanças na organização, os Estados Unidos travaram o processo de nomeação de novos membros para o Órgão de Apelação. Com isso, o atual sistema de solução de controvérsias deve parar de funcionar a partir de 11 de dezembro deste ano.
O tema da reforma da OMC é intrinsecamente ligado ao conflito entre os Estados Unidos e a China. Washington alega que a OMC não conseguiu conter a China que se tornou um gigante econômico "jogando sujo", desrespeitando as regras do comércio internacional no que tange aos subsídios, política industrial, propriedade intelectual, transferência de tecnologia e inovação.
Entretanto, ao invés de buscar um consenso com outros 163 países dentro da OMC (considerando que uma grande parte dos países já internalizaram a necessidade de mudança e discutem propostas nesse sentido), os EUA partiram para um ataque unilateral.
A discussão é antiga. Mesmo antes da atual administração, os Estados Unidos, juntamente com a União Europeia e o Japão, defendiam a reforma da OMC com o intuito de modernizá-la e assegurar a eficácia das regras do sistema mundial do comércio. Com Trump, a discussão tomou o formato de confronto.
Agora no fim do mês, no Japão, o G2o volta a discutir o tema. A tática de ameaças por parte dos Estados Unidos, provavelmente, não levará a nenhum acordo. Nem no âmbito do G20, nem no diálogo bilateral com a China.
As consequências dessa falta de acordos serão pesadas. O setor empresarial americano, que por enquanto, assumiu os custos das tarifas, sem repassá-los para os consumidores, segurando as demissões de mão de obra e tomando várias outras medidas temporárias para manter as cadeias de fornecimento, não poderá fazê-lo por muito tempo. O mercado financeiro está prevendo aumento de inflação e de desemprego.
Resta a esperança de que os fatos voltem a guiar a política externa do presidente Trump. Como disse o filósofo Cícero, "uma paz injusta é melhor do que uma justa guerra".
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