“Ce tá de palhaçada comigo?” é uma expressão que se renova e perde o tom pejorativo se dirigida a um…palhaço.
Palhaço é como um espaço de anulação. A desgraça do palhaço é hilária. Seu choro não causa identificação. Seu drama é engraçadinho.
O mestre me contou que o palhaço é representado pela carta “Fou” do Tarô: um louco, de olhos fechados, andando à beira de um precipício.
Carrega entre os lábios uma rosa vermelha e, não obstante, um cachorro com os dentes cravados em sua canela.
Para o palhaço não importa a chegada mas o caminho, a idade mas a experiência, o sorriso mas o instinto.
E ele é de uma ingenuidade infantil: não assexuada, mas inconsciente de sua própria sexualidade. Não sabe o que fazer com o que o corpo se lhe apresenta.
Há vários palhaços, mas o palhaço bom é o que mexe com a lógica, o que força a realidade.
E A Noite dos Palhaços Mudos é e faz tudo isto.
Acrescente-se a tudo um roteiro simples e quase perfeito, trilha sonora original (mesmo, não só feita especialmente para a ocasião, mas absolutamente imprescindível na trama), brincadeiras de palco generosas e…mudez.
Os palhaços são, de fato, mudos. Num período histórico em que tudo se consegue pelo grito, um silêncio não vai nada mal.
O roteiro é ótima adaptação de uma história em quadrinhos do Laerte veja os quadrinhos clicando aqui.
Tem uma história que, achei, poderia ter se resolvido um pouquiinho mais tarde, já que uma vez apreendido o nariz, passada a incrível cena da perseguição de carros o roteiro pareceu ser esticado e, por isso, um pouco deformado.
Mas é um espetáculo tão inteiro que este leve incômodo poderia passar despercebido.
É a história de dois palhaços em busca do nariz de um deles que foi cortado por uma organização internacional que tem por objetivo dizimar os palhaços mudos.
O Laerte falou que a história original (um pouco a este respeito, aqui) trata da ausência de tolerância que alguns insistem ter ainda em relação a culturas diferentes.
Mas acho que o Laerte, como todo grande, perdeu controle sobre sua própria criação: acho, Laerte, que a história trata de muito mais que tolerância.
Trata do espírito brincalhão, da relação com o tempo, da infantilidade que o palhaço não só representa mas incorpora e que é cada vez mais desestimulada em nossa sociedade.
Daí uma “polícia” dos palhaços mudos. E, veja, eles são mudos, têm de incomodar por outros meios já que não podem deixar de pedir “por favor” ou discursar na ONU.
Sua ação, política, é praticada com o corpo inteiro, não podem dizer com a lingua.
Um palhaço que é treinado a agir sem pensar. A não se preocupar com as consequências mas com sua vontade imediata.
E aí o espetáculo superou o quadrinho. A ausência de sentido que Laerte representa é pelos atores corporificada, tão bem que levaram um prêmio Shell de atuação.
A iluminação mais do que destaca, incorpora-se à trama.
Na busca pelo nariz, os dois palhaços entram no inóspito prédio da organização do mal. Olham para cima e veem uma janela. Oh!
Apagam-se as luzes. Volta a luz: a janela está no chão e os palhaços estão escalando a parede que agora é o piso do palco.
Uma brincadeira bem séria com a perspectiva que não se esgota até que acabe e que poderia não acabar nunca.
Há um jogo com o tempo e com o caminho que pode ser o subtexto.
São sessenta minutos de palhaçada que jamais poderia ter sido realizada em 2 minutos, apesar de que teria sido muito possível recuperar o nariz em 2 minutos.
Mas recuperar o nariz não era mais importante do que o mundo que ia se criando no caminho.
O preparo físico dos atores era de uma organicidade assustadora. Faziam cambalhotas e subiam uns sobre os outros como se tudo fosse fácil.
Mas a técnica era a base, não protagonista. A La Minima quis montar um espetáculo onde aparecesse tudo o que tiveram de trabalhar na união entre circo e teatro: a corporalidade do palhaço de circo, as acrobacias, a pantomima, o clima dos números clássicos, mais o texto e a encenação de teatro.
Conseguiram.
O excitado grito de Fernando Sampaio após o agradecimento: “Viva o Palhaço Brasileiro!” não grita só a indiferença com o outro mas grita uma existência de outra ordem, e progresso, a desordem do palhaço.
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