Circo Negro, texto do argentino Daniel Veronese, encenado pela Cia Senhas numa bela demonstração de teatro de grupo.
Adorei assistir no espacinho apertado e aconchegante da Cia dos Palhaços. Não creio ter sido a única.
Assim que acabou tudo, ouvi: isto é teatro. Assim, sem exclamação: “isto é teatro” poderia ser irônico e desafiador, mas dado o contexto, acreditei ser verdadeiro. Mesmo que sem exclamação.
Era uma mistura de terror com sarcasmo, tipo Tom Waits mesmo, ou seria Carlos Careqa? Ambos
Sempre achei o Tom Waits um Bukowski musicado. Sabe a história do colorido que cheira mal? A edição de Misto-Quente da L&PM Pocket e seu retumbante vermelho e preto.
E bem posta a escolha desta encenação da Cia Senhas, já que o próprio Daniel Veronese fez coisa de outra ordem com sua companhia.
A montagem do Veronese era algo lúgubre onde as meninas eram bonecas e onde de colorido só havia o artificial o de plástico.
Mas a Cia Senhas parece ter bem mais vontade de que o público brinque junto e por isso põe cores, palmas gravadas, olhar que olha para a platéia e atuação mais orgânica, humana quase, ou seria verossímil?
Claro, a artificialidade da apenas ocasional voz das personagens causa impressão contrária.
Claro que esta artificialidade causa choque e claro que a organicidade fala do jogo posto em cena muito mais que dos indivíduos personagem. Entende?
Era orgânica, unívoca a atuação que falava da própria atuação. Havia tão pouca fala que quando diziam nos assustavam, como se houvesse algo errado.
O som das palmas gravadas auxiliava um jogo de cena tão revelador quanto complexo.
O jogo duplo poderia nos inspirar a seguir o exemplo tanto quanto deixar que a sonoplastia, numa ação política, fizesse nosso trabalho de público.
As palmas do final do espetáculo foram antecipadas e apareceram também no começo.
Os atores cansavam de agradecer e elas nunca acabavam, o que pode parecer apenas entretenimento, mas é, além de bela ironia, também uma maneira de tentar controlar a reação do público.
Entretenimento posto que nos diverte.
Ironia por que mostra que a tecnologia dá conta dos aplausos, única participação direta do público no espetáculo.
Maneira de tentar controlar disfarçada, já que pode nos estimular a bater palmas como, de fato, aconteceu ao final.
Era um tudo circo tétrico colorido, em que os jogos tentam revelar a atuação e, numa relação entre teatro e vida, revelar o nosso teatro quotidiano.
Claro que enfiar uma faca nas costas de alguém ou brincar de ser cego e tentar encontrar o sininho não são quotidiano de todos mas daqueles do teatro ou das crianças.
Daí reveladora uma concepção de teatro como algo para lá da vida, para uma vida especial, para, ao menos, uma infância onde ainda sabemos brincar.
Num ambiente em que até tubarão voa, o que podemos esperar? Mas tubarões voam também sobre a realidade, só não lhes damos a devida atenção porque as vezes estão disfarçados de verossimilhança.
O nome da peça faz referência ao espírito da encenação, que é negro no mecanismo de mostrar tudo o que o ator faz.
A primeira fala bem exagerada do Alberto deu destaque ao que deveria. Mas o exagero se perdeu talvez congelado no iceberg da platéia.
Mas não podemos nos esquecer que a platéia tem de ser convidada pelos atores: se o palco não está quente, ninguém mais fica.
Claro que considero aqui a ansiedade de uma estréia. Mas claro que mesmo na ansiedade da estréia é necessário ver que a responsabilidade é do palco em estimular o público e não o contrário.
Senti nisto uma mãozinha menos de tinta. Uma lixadinha talvez no ritmo das ações e na cena em que a menina coloca colheres no rosto de Alberto, já que não a entendi até ler o texto.
Talvez conversar um pouco com o ator que faz o Ernesto e usar melhor sua subserviente voz.
Quem sabe prestar um pouco de atenção ao conto do malabarista russo, já que ele se descola do restante da peça. Mas tudo com calma, sem dobrar demais o bambu, senão ele quebra.
Fora isto, tão bom ver coisa boa. Tão bom ver peça limpa, casa cheia e gente agindo como fosse ao Oscar. Tubarão voando no céu da realidade.
Não falo de vestimentas, tenho fé nos que usam salto para ir ao mercado e tênis para ir ao tribunal. Um amigo (oi José!)me contou de um país cuja cultura determina que se vista bem em casa e que se use as piores roupas para sair.
Falo do desfile de estrelas (ou seriam tubarões?) que uma estréia da Cia Senhas provocou: Curitiba não tem mar mas tem bar, não tem oscar mas tem gralha, não tem glamour mas finge.
E se não gostasse de fingimento, não gostava de teatro.
Gostei deste clima todo, o tétrico da montagem original foi substituido por um surrealismo cinematográfico e colorido.
E tintas de cores tão fortes sempre dão mais destaque àquela demão que falta.
Gosto da ambição justamente porque ela arrisca. E é da força das tintas que gostei naquele dia, a demão de tinta é só reforçar, mas as cores fortes não se encontra em qualquer lugar.
O serviço desta belezinha que é o Circo Negro, você encontra aqui.
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