Vou chamar de um furo ideológico quando uma cosmologia, um sistema de pensamento (não necessariamente acadêmico) apresenta uma contradição.
Calma, ninguém mais morre disto! A contradição é permitida e até desejável.
É ela que apresenta o furo ideológico e que faz o pensante reagir, pensando mais, seguindo na descoberta das razões porque aquela contradição se apresenta.
O tal furo desequilibra todo o restante da estrutura que está a ele relacionada, o sistema de pensamento pode até ruir diante da ausência de um de seus tijolinhos.
Se você tem por ideologia que a paz e o amor salvarão o mundo de todos seus problemas, acredito que já tenha começado com vários tijolos ausentes.
Eu acreditei nisto, confesso, quando cheguei aos 18 e confiei no John e na Yoko para me dizer como fazer política pública.
Eu continuei acreditando nisto quando cheguei aos 23 e li “A arte de amar” do Erich Fromm. Achei por muito tempo que Amor podia ser aplicado às mesas de discussão de Marx e da ONU.
Que era conceito claro o suficiente para discutir o sistema econômico do capital, as guerras, religião, democracia.
Que era material suficiente para resolver os problemas da fome, das epidemias e da má-distribuição de renda. Mas achei errado.
E por mais que haja outra ideologia que afirme que cada um pode ter sua opinião, eu não confio na opinião da maioria das pessoas, porque elas simplesmente tiram suas opiniões da bunda.
Mas ainda acredito no amor. Acredito em sua potência de ser significante cultural suficiente para estimular melhores cidadãos, pessoas que se preocupem mais com o outro.
Mas não acredito que isto seja suficiente. E acho que são estes os tijolos que faltam a esta ideologia.
Conheci todo o pessoal da Cia do Abração: os atores, a Fabiana e a Letícia. Conheci seu espaço, seu amor pelo teatro e pelo que ele pode fazer pelo seu público alvo, as crianças.
Conheci suas opiniões sobre algumas questões truncadas como por exemplo a relação do sujeito contemporâneo com o trabalho e a relação entre produção artística e dedicação.
Confio em suas opiniões e no trabalho que realizam à partir de e chegando a elas. A Cia do Abração não tira nada da bunda, a não ser que a arte demande um “tirar da bunda”.
Ainda assim, eles ensaiariam diárias seis horas o ato de “tirar da bunda”. Estudariam a fundo como se tira da bunda e porque se deve da bunda tirar.
Conversariam sobre a “história do tirar da bunda” e ao final montariam uma bela e sensível tirada da bunda.
Mas o espetáculo Estórias Brincantes parece exagerar na democracia ao ponto de fazer concessões ideológicas. Ele acaba partindo da premissa ideológica que relaciona diretamente o pai (o amor) ao país.
Mas esta não é uma relação possível, tampouco a terceira relação destes dois significantes com Paz.
Esta relação ideológica forma uma ideologia frouxa e acaba interferindo negativamente na estrutura narrativa do espetáculo e o torna confuso e afirmativo; quando, sei, a Cia do Abração prefere ser clara e questionadora.
Em determinado momento os atores começam a se perguntar quem são os pais das coisas todas.
Perguntam-se quem é o pai deles, do sol, da chuva, das árvores e por aí vão até chegar à pergunta derradeira: “Mas se todo mundo tem pai, onde está o pai do mundo que deixa ele ficar descuidado do jeito que está?”.
Eles não respondem ser Deus, ao contrário, respondem que a resposta varia entre as pessoas: “alguns acreditam ser Deus, outros acreditam em outras coisas”.
Mas nós não sabemos que outras estas coisas são.
Quando os atores se perguntam “quem é o pai do mundo”, a música pára, eles param, nós paramos. A cena parece ter acabado ali. A ideologia parece ter se instaurado.
Antes que o restante da cena se desenrole, em minha mente ecoava: é Deus, é Deus, é Deus…e, vejam, para mim o Deus (este arrogante que usa letra maiúscula para substantivo) não passa de um amigo imaginário para adultos!
O que toma destaque, de acordo com toda a estrutura daquele trecho, não é o questionamento sobre as várias ideologias possíveis, o que se destaca é a insinuação que veio antes, a mais evidente, aquela em que setenta por cento dos brasileiros religiosamente acredita.
A verdade que se destaca é a de que o pai do mundo é Deus.
E estes tijolos quebrados, fazem ruir o espetáculo inteiro.
A belezinha de estrutura narrativa não se instaura porque o que aparece é um remendo de contradições.
A encaixada trilha sonora e a preciosidade da sonoplastia perdem o brilho em cenas que parecem não saber muito bem como aderir sua ideologia ao mundo criado.
A atuação tão visceralmente corporal dos três em cena mereceu a ofensa de uma pré-adolescente da platéia – podemos condená-la já que o texto parecia não saber o que queria dizer?
Eu saí triste por discordar da Cia do Abração. Estou incomodada em escrever esta resenha porque não quero que a impressão negativa se instaure sobre a positiva.
Quero que a Cia do Abração sempre atraia a atenção do público. Escrevo ainda assim porque não me é possível mentir, e à Cia do Abração sequer seria possível aceitar uma mentira.
Escrevo ainda porque é necessário que se estabeleça a corrente crítica em Curitiba. Ninguém acerta sempre e esta negativa é só sinal de que a Cia do Abração é, sobretudo, humana.
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