Imagem ilustrativa.| Foto: Unsplash
Ouça este conteúdo

No dia 11 de julho de 2022, o médico anestesista Giovanni Quintella Bezerra foi preso em flagrante por ter praticado ato libidinoso com uma grávida, que estava severamente anestesiada por ele próprio, durante a realização do procedimento de cesárea. O ato criminoso do médico foi gravado pelas enfermeiras através de um aparelho de celular, e, evidentemente, o médico não havia consentido com a gravação. Diante dessa questão, surge a seguinte dúvida: as enfermeiras poderiam ter realizado a gravação do ato criminoso do anestesista? Essa prova poderia ser considerada lícita e utilizada para a condenação do médico? Vamos, agora, analisar essa questão.

CARREGANDO :)

Sem dúvida, as enfermeiras poderiam ter filmado o crime cometido pelo médico anestesista. Primeiramente, como profissionais da saúde que são, elas têm o dever de zelar pela integridade física e mental da paciente que está sob seus cuidados. Além disso, o médico não tinha direito algum sob o sigilo de seu ato criminoso, muito ao contrário, pois as próprias enfermeiras e os demais médicos que participaram do parto poderiam realizar a prisão em flagrante do anestesista. A lei – artigo 301 do Código de Processo Penal – autoriza qualquer pessoa a prender outra que esteja em flagrante delito. Logo, se as enfermeiras tinham o direito de prender o médico em flagrante, que é um ato mais severo do que filmar alguém, evidentemente que o ato de gravar um terceiro que está praticando um crime poderia, sim, ter sido realizado.

Não há sentido que uma gravação seja permitida apenas para beneficiar a defesa de um criminoso; é necessário que as provas no processo penal possam ser utilizadas tanto pela defesa como pela acusação

Publicidade

Contudo, uma lei aprovada em 2019 daria certa margem para questionamento da gravação realizada. Quando o Congresso Nacional discutia o Pacote Anticrime (Lei 13.964/19), apresentado pelo Poder Executivo, os parlamentares incluíram um dispositivo na lei que dizia ser possível a captação ambiental sem o conhecimento da polícia ou do Ministério Público “desde que fosse utilizada pela defesa”. Assim, poderia se extrair da lei nova que essa gravação somente seria considerada lícita caso ela fosse realizada em benefício da defesa de um criminoso, e não em favor da vítima ou da acusação.

Quando o Pacote Anticrime foi encaminhado para o presidente da República, ele vetou esse trecho da lei, pois entendeu que uma prova não deve ser considerada lícita ou ilícita levando em consideração apenas uma das partes de um processo criminal, que no caso seria o réu. O presidente também entendeu que a aprovação dessa parte do projeto representaria um retrocesso legislativo no combate ao crime. Contudo, o veto presidencial foi derrubado pelo Congresso Nacional, e a lei está em vigor.

Mas ainda que a lei esteja vigorando, não faz sentido algum não se considerar a gravação realizada pelas enfermeiras como prova válida. Explico: vamos supor que essas enfermeiras não tivessem realizado a filmagem com o celular, mas apenas testemunhassem o estupro praticado. Assim, quando fossem chamadas para prestar depoimento, essa prova testemunhal não seria válida? Claro que sim, pois elas presenciaram o cometimento de um crime hediondo. Desta forma, se elas poderiam depor, por que não poderiam gravar o crime ocorrido? A gravação não seria muito mais eficaz do que as palavras das testemunhas? Evidente que sim, pois a filmagem que demonstra a prática concreta de um crime é muito mais fidedigna do que o depoimento de uma pessoa, seja uma testemunha ou a vítima.

Não há sentido que uma gravação seja permitida apenas para beneficiar a defesa de um criminoso; é necessário que as provas no processo penal possam ser utilizadas tanto pela defesa como pela acusação, pois os direitos da vítima também devem ser assegurados. E como direito da vítima e de toda uma sociedade podemos mencionar o direito à segurança pública e de que criminosos cumpram suas penas – após o devido processo legal – com intuito de serem afastados da vida em sociedade e para que não cometam novos crimes contra outras pessoas.

Foi apresentada ao STF uma Ação Direta de Inconstitucionalidade para que essa parte da lei seja declarada inconstitucional. A Procuradoria Geral da República (PGR), a Advocacia-Geral da União (AGU), e a Presidência da República apresentaram pareceres favoráveis. Agora, cabe ao presidente do STF pautar essa ação para que seja votada pelo pleno. Contudo, no meu entendimento técnico, é evidente que as filmagens realizadas são plenamente válidas, e descartar essa prova lícita seria uma total afronta ao Estado Democrático de Direito. A impunidade de criminosos perigosos iria se sobrepor ao direito das pessoas, e principalmente das mulheres, em terem preservadas sua integridade física e psíquica.

Publicidade