Basta uma pequena decisão errada para que a tragédia do endividamento e da fragilidade econômica aterrorize alguém para o resto de sua vida. Em 1955, a Argentina fechou o ano com uma reserva equivalente, à época, a 371 milhões de dólares. No ano seguinte, Pedro Eugenio Aramburu obteve um empréstimo de 700 milhões de dólares, queimou essas reservas e deixou o país praticamente em default.
De lá para cá, a Argentina segue em uma gangorra econômica na qual a instabilidade e a dramaticidade políticas, aliadas à falta de credibilidade de sua moeda, praticamente impedem o país de se recuperar. O anúncio dessa semana feito pelo Ministro da Economia, Hernan Lacunza, de que o país estava reorganizando o pagamento de sua dívida de 57 bilhões de dólares com o FMI (Fundo Monetário Internacional) pegou o mercado de surpresa, pero no mucho. Na prática, Lacunza antecipou o que o candidato presidencial Alberto Fernandez (que é para Cristina Kirchner o que Medvedev foi para Putin) havia sugerido em uma carta pública. Nela, Alberto sinalizava que não só uma renegociação da dívida era necessária, como também que o FMI deveria suspender a transferência de 5,4 bilhões de dólares programada para ocorrer em setembro. Lacunza seguiu a linha sugerida por Alberto Fernandez, pelo menos em relação à prorrogação da dívida. Porém, no que tange ao depósito de setembro, manteve-se impávido e na expectativa de ver o valor pingar na sua conta. Essa insólita elaboração coloca para o FMI uma decisão complicada: ceder à sugestão do favorito a vencer o pleito eleitoral ou seguir na linha do atual governo, mesmo sabendo que isso poderá resultar em uma corrida por dólares no país.
Aqui em Washington, conversando com vários economistas seniores do FMI, ouvi que o pedido de prorrogação do empréstimo já era esperado. Na verdade, afirmou um deles, "quando Alberto Fernandez defendeu a prorrogação do empréstimo, houve um clima de alívio no banco, pois sabíamos que era o que Macri queria. Nesse momento, quanto mais decisões estivessem alinhadas entre governo e oposição, melhor para o FMI”.
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Enquanto o mercado financeiro já trata a moratória como calote - mas a justifica como renegociação, temendo que a própria reação agrave ainda mais a frágil economia argentina -, paira uma dúvida cruel sobre o caráter dessa manobra. Caso o FMI aceite a extensão, a moratória se tornaria uma renegociação; por outro lado, a própria relutância do FMI, mesmo a aceitando, sinalizará ao mercado que há um clima de desconfiança no ar. "Se Lacunza, que é liberal, pede uma renegociação, Fernandez, quando for Presidente, irá desligar o telefone na cara do fundo ou fingir que entrou em um túnel e o sinal caiu", afirmou um investidor de um grande fundo de investimentos de Nova York.
O pior, no entanto, é a mudança obrigatória nos prazos de pagamentos de títulos do tesouro (Lete) e dos títulos de capitalização (Lecap). Para o mercado, isso sim sinaliza uma moratória. "Você não verá um desespero tão agudo no curtíssimo prazo, mas verá um abandono quase que total do investidor em relação à Argentina caso Alberto Fernandez se torne Presidente", expressou um fundo que gerencia bilhões de dólares na América Latina.
Moratória terá reflexos no Brasil
Para o Brasil, a moratória indica potenciais tempos ruins. Por mais que o resultado do crescimento do PIB tenha sido melhor do que o esperado, ainda é um número baixo para a expectativa montada em dezembro de 2018. Além disso, o céu está ficando escuro na economia global e o investidor pesado procura países institucionalmente sólidos para se abrigar. Em apenas dois anos, nossas exportações para a Argentina caíram de 18 bilhões de dólares para apenas 9 bilhões. A indústria automobilística já ligou o sinal amarelo, sabendo que diminuirá consideravelmente suas exportações ao país vizinho. Com sua balança comercial afetada, o Brasil tende a ser prejudicado ainda pela ausência de credibilidade de nossos hermanos. O investidor-aventureiro, que enxerga tudo na América Latina como "mais ou menos a mesma coisa", será o primeiro a manter seu dinheiro em casa.
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Todo o clima de desconfiança não é novo. Macri não soube explicar para a sociedade argentina o tamanho do pepino que herdou. Talvez pela soberba de que solucionaria os males econômicos do país, talvez por inocência de quem confundiu a gestão do Boca Juniors com a de um país complexo e repli de soi meme [réplica de si mesmo, em tradução livre]. Cristina Kirchner, caso vença as eleições com Alberto Fernandez, deixará bem claro para todos os argentinos quais foram os erros táticos e estratégicos promovidos pelo governo Macri. Na América Latina, quem conta a história, escolhe a verdade. Na prática, o populismo de Cristina e o conservadorismo de Macri não representam nada em um país onde a população não confia na própria moeda.