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“Você comeu o frango; agora vai ter que comer o galo.” Foi assim que Francisco de Almeida, terminou sua carta, e foi assim que eu terminei minha coluna anterior. Vamos lembrar que quem recebeu aquela carta, que parecia pesar uma tonelada de ameaças, foi o governador de Diu, Malik Ayaz: ele foi o arquiteto da batalha que matou o filho de Francisco, o jovem Lourenço de Almeida. Agora, o pai queria vingança, custasse o que custasse.
Francisco de Almeida, como velho lobo do mar que era, estava atento ao surgimento dos primeiros traços de uma nova “arte da guerra” que até aquele momento ninguém ainda tinha dominado totalmente: batalhas navais. Mas essa arte dependia de navios e no início do século XVI Portugal tinha poucos navios à disposição. Francisco de Almeida sabia bem disso; mas ele era o vice-rei de Portugal na Índia, e como vice-rei ele poderia ter quantos navios quisesse. E para vingar a morte do filho, navios ele teria; os melhores da marinha portuguesa.
Ele ordena que 17 galeões sejam reunidos em Chaul: ele e seus navios partiriam das águas nas quais seu filho havia morrido. Em Chaul ele encontraria uma espécie de motivação macabra para aumentar ainda mais seu ódio, que já havia resultado em metástase; todas as células do corpo dele pareciam ferver. Os muçulmanos sabiam disso e estavam aterrorizados. Francisco de Almeida, então, tomou uma atitude que ia na contramão da mais pura essência do militarismo global: ao invés do fator surpresa, fez questão de que seus inimigos soubessem que ele estava indo ao encontro deles. E isso fica claro na carta que ele escreveu: “Estou indo com a esperança em Deus de descarregar em vós toda a minha fúria. Estou indo com meus cavaleiros, e aviso-vos de antemão para que estejais preparados para quando eu chegar”.
Francisco de Almeida conseguiu sua vingança e criou um império: o primeiro império global da história.
Agora, o pobre destinatário daquela carta só tinha uma coisa a fazer: preparar-se. Malik Ayaz pede ajuda a todos os adoradores de Allah no Oceano Índico e Norte da África: o sultanato Mameluco, Reino de Calicute, Império Otomano; e até para a “traidora” da causa cristã, Veneza. A chegada dos portugueses no Índico drenou boa parte do comércio do Mediterrâneo, monopolizado pelos venezianos. Então eles viram nessa coalizão a única chance de tirar seus arquirrivais do Oceano Índico, na bala. Essa união inesperada consegue mobilizar um número de navios impressionante, jamais visto na história do Oceano Índico: 217 galés de guerra. Eles estavam prontos para receber o galo de briga. Pelo menos era o que eles achavam.
No dia 3 de fevereiro de 1509 os aliados veem a armada portuguesa se aproximando da costa de Diu; Almeida e seus cavaleiros foram mordazmente pontuais. Porém, os muçulmanos não tinham pressa; eles estavam em vantagem e bem supridos próximos a costa e podiam continuar ali confortavelmente. Se alguém tinha que ter pressa, eram os portugueses. Mas Almeida não tinha pressa; ele tinha ódio, e por isso ele não queria perder tempo. Já sabendo da tática muçulmana de colocar os navios próximos da costa, para serem auxiliados pelos canhões terrestres, Francisco de Almeida em pessoa lidera o ataque avançando pelo canal de Diu com seu navio capitânia: o Flor de La Mar. Ainda com as velas abertas ele gira seu navio, colocando-o paralelo a esquadra inimiga. Os muçulmanos não entenderam muito bem a manobra, até que eles viram aquelas bocas do inferno se abrindo em sua frente: três decks repletos de canhões cospem fogo sobre os inimigos.
Mas esse era só o início da batalha: os demais navios portugueses ao verem a linha muçulmana se quebrando seguem o mesmo exemplo do seu vice-rei: colocam seus navios paralelos, e “fogo” neles! Uma chuva da morte caia sobre os “turcos” que não resistiram e começaram a fugir da luta; os que ficaram não conseguiram resistir. O navio capitânia da coalizão é capturado e todos os seus 217 navios são destruídos ou capturados. Os muçulmanos não podiam acreditar no que viam, e aquela tragédia diante dos seus olhos só tinha uma explicação para os muçulmanos: os portugueses eram um flagelo de Allah! Cerca de 5 mil muçulmanos morrem como consequência da batalha, um número assustadoramente alto para qualquer conflito medieval e renascentista.
Mas Francisco de Almeida queria mais. Com o mar dominado, agora faltava a terra. Ele avança com seus cavaleiros pela cidade de Diu, e um banho de sangue macabro começa: centenas de pessoas são mutiladas, decapitadas, tem seus narizes cortados; outros são colocados em bocas de canhões e explodidos em pedaços. Francisco de Almeida faz uma pira de cadáveres em frente aos portões de Diu. Um fogaréu e fumaça com cheio podre de carne queimada podiam ser vistos e sentidos por toda a cidade. A fúria do vice-rei não parecia ter fim; mas ela teve, por esgotamento físico e emocional. Depois de tantas horas em modo berserker digno de uma saga viking, o homem finalmente perde as forças e desmorona.
O Governador de Diu se rende e oferece vassalagem total ao Rei de Portugal, além de incontáveis somas de dinheiro, jóias e especiarias. Mas Francisco não queria nada daquilo, ele só queria sua vingança... E ele a teve! Mas ele teve muito mais: a destruição da frota muçulmana criou um vácuo no Oceano Índico; não havia Estados capazes de levantar tamanha frota novamente, nem mesmo o Império Otomano. Agora o Oceano Índico era dos portugueses, e somente dos portugueses. Francisco conseguiu sua vingança e criou um império: o primeiro império global da história. Toda a riqueza das especiarias agora estava nas mãos de Portugal. Curiosamente, o Rei Português Manuel I não havia permitido aquele ataque a Diu, e deu ordens para Almeida partir para o Mar Vermelho e controlar a região. Como o Rei português deve ter ficado feliz com aquela desobediência.
O impacto geopolítico que a batalha de Diu causou no mundo é impressionante. De acordo com o historiador militar William Weir em seu livro “50 batalhas que mudaram o mundo”, a antiga Rota da Seda entrou em colapso; Veneza perde seus status de potência marítima e comercial, a riqueza que circulava exclusivamente pelo Mediterrâneo há séculos é fracionada violentamente. O Império Otomano perde a receita proveniente da vassalagem dos estados muçulmanos no Índico. O mundo observava atônito uma nova era de hegemonia global militar e comercial através dos Oceanos; e até hoje quem controla os mares, controla o mundo. Os Estados Unidos da América parecem ter aprendido bem a lição ensinada por Francisco de Almeida, em Diu; assim como os holandeses e ingleses; alunos esses que superaram em muito o professor. Tudo isso graças a Francisco de Almeida, que para o bem ou para o mal, mostrou como um galo nervoso pode ser perigoso.
Conteúdo editado por: Jônatas Dias Lima