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“A independência passou, estamos livres”! Mas ainda assim a situação não está nada fácil; pelo menos muita gente hoje diz que não estava. Claro, que aqui estava longe de ser perfeito mesmo. E a principal imperfeição, a escravidão, continuava firme; logicamente a pior de todas as mazelas brasileiras daquele tempo. Há ainda outro problema, e ele permeia a própria gente que chegou para viver aqui, e que lançou as bases desse país no âmbito moral, cívico e político: os colonizadores!
É claro que você seja jovem, adulto ou idoso já ouviu que fomos colonizados por degredados! Você pode até não lembrar muito bem o que isso significa, mas lembra claramente que coisa boa não era. De fato, degredado, de acordo com o dicionário Aurélio quer dizer “aquele que sofreu pena de degredo; desterrado.” Em termos simples, degredado é uma pessoa indesejada que foi expulsa de seu país de origem. E para uma pessoa ser expulsa de um país, boa coisa ele não fez, certo? Errado! É porque essa simplificação flagrante só atende pautas políticas e ideológicas, e pouco históricas. Uma rápida olhada nos autos da inquisição portuguesa, responsável por degredar esses infelizes (ou pobres?) diabos para o nosso país ajuda a gente a colocar esse termo na perspectiva certa.
Para isso, voltamos muito tempo antes da nossa independência; nas primeiras décadas de 1500, no período do então recente Descobrimento do Brasil. Aliás, espero que ninguém se incomode por não colocar aspas em Descobrimento; foi sem querer, querendo.
Pois bem, nesse período, e bem antes, aliás, Portugal era um reino ultra religioso com um catolicismo que talvez pudéssemos chamar de raiz. Tanto era assim que mesmo após mais de 200 anos do fim das Cruzadas, os reis, príncipes e nobres portugueses ainda tinham aquela visão heroica da “Glória das Cruzadas” e queriam levá-la até o infiel; estivesse ele onde estivesse. Pergunte para um português o que foi a Batalha de Alcácer Quibir, em 1578, que eles vão dizer pra você que eles eram assim mesmo. Aliás, muitos historiadores dizem que a religiosidade foi uma das forças motrizes (ou a principal força motriz) que levou às Grandes Navegações que mudaram a história do planeta e do homem. Claro que eles tinham suas justificativas também, afinal, foram dominados por muçulmanos durante vários séculos; invasão após invasão; conquista após conquista. Ir até o coração dos infiéis era uma questão de retribuição e salvação para eles.
Contudo, os portugueses eram honestos e pragmáticos em sua visão: arrumaram a bagunça em casa primeiro. Em alguns casos, fizeram isso ao mesmo tempo em que arrumavam a casa dos outros. Então, foi em Portugal e em suas províncias que começaram os temidos Tribunais do Santo Ofício que consistiam no braço português da Inquisição, onde os “pecadores” seriam expurgados daquele santo solo! E é aí que as coisas começam a ficar esquisitas de verdade. Pois quando imaginamos que alguém chegou a ser expulso de seu país, supomos que aquilo aconteceu porque o “pecado” (crime, na linguagem jurídica) foi grave mesmo. E quais crimes você acha que eles teriam cometido? Estupro? Assassinato? Roubo? Corrupção? Aqueles autos do Santo Ofício aos quais me referi antes nos ajudam a entender melhor quais atos terríveis eram esses que mereciam a expulsão e o desterro dessa "gente indesejada" em nosso país. Mas para isso, peço gentilmente ao leitor que, se não estiver sentado, procure um lugar confortável para se sentar, porque a lista é pesada e sinistra demais para ser lida de pé. Segue:
Tocar serenata no meio da noite, fazer mexeriquice (vulgo fofoca), fornicar em conventos, falar mal do rei (muitos sofriam pena capital com essa), escrivão que esquecia de colocar selo real na carta, falsificadores, fornicar com primas ou irmãs, cafetões, fazer desafios, perturbar procissões, trancar uma porta com gente dentro do cômodo, xingar um oficial de justiça, fingir gravidez, molhar o pão antes de vender pra ficar mais pesado, ajudar escravos a fugir, brigar na rua, ser vagabundo, cortar árvores do rio Tejo, vender armas para os mouros, jogar cartas falsificadas, passear com gado, entre outros. Não duvido que escrever esses crimes em uma coluna de jornal também pudesse ser motivo para uma boa expulsão de Portugal.
Os que afirmam que o Brasil foi colonizado por degredados se baseiam mais nas suas próprias suposições do que em pesquisa sistemática.
Enfim, todos os que cometessem esses crimes terríveis seriam exilados para as colônias, não só para o Brasil, mas para as demais colônias portuguesas também. Não à toa, o professor e escritor brasileiro Barão Homem de Melo comentou: “A coleção imensa das leis ditas extravagantes, nos deve levar a justo título admirar como a nação inteira não tenha sido degredada em massa”. Aliás, não nos esqueçamos de um crime que era considerado quase tão desprezível quanto o assassinato e que levaria ao degredo automático: ser judeu! Nesse caso, não tinha conversa: era entrar em um navio e ser despejado em outro lugar. Aliás, o Brasil foi a casa de muitos desses pobres e sofridos judeus sefarditas.
Tantos seres “desprezíveis” chegando em nossa terra fez até o Padre Manoel da Nóbrega e o governador-geral Mem de Sá afirmarem que o rei estava "povoando esta terra apenas com malfeitores". Esses eram os principais “crimes” passíveis de degredo para as colônias. Agora vamos fazer uma breve pausa para um anacronismo sadio: você acha que mexeriquice, fazer serenata no meio da noite, passear com gado, fazer desafios e ser judeu torna alguém um criminoso indesejado? Essa era a opinião da época, mas hoje, fazendo uma leitura lógica, é impossível chegar à conclusão que nosso país recebeu gente da pior espécie. Se esses criminosos eram assim tão ruins como classificariam assassinos, ladrões, estupradores e corruptos? Portanto, essa análise breve deixa claro que nosso país não recebeu esses "criminosos” - não nessa quantidade avassaladora que fazem parecer, absolutamente -, e que nós consideramos desprezíveis do ponto de vista moral, cívico e político, aos quais repudiamos veementemente seu comportamento.
Esse preconceito e visão de mundo era deles, não nosso. Fazendo um trocadilho com as famosas mensagens de antivírus "nossa definição de crime foi atualizada". Aliás, nenhuma nação do passado teria tantos assassinos, ladrões, estupradores e corruptos capazes de colonizar outro país inteiro, principalmente se enviados de um país tão pequeno quanto Portugal para um território tão grande quanto o Brasil. Essa visão desonesta da história atende apenas a fins políticos e ideológicos, não científicos.
Colonizadores bandidos e corruptos: a história não é e não pode ser tão simples assim. Trata-se de uma justificativa forte para culpar outros pelo que somos hoje, e seguir em frente com pautas políticas. “200 anos de Independência é pouco pra recuperar o estrago”, dizem agora, e duzentos anos à frente vão dizer que 400 anos também é pouco pra recuperar o estrago.
Nas palavras do professor Geraldo Pieroni, um dos maiores pesquisadores nos estudos da colonização e degredo para o Brasil, escritor de obras importantes sobre o assunto como “Os excluídos do Reino: a Inquisição portuguesa e o degredo para o Brasil Colônia”, ele conclui que “os que afirmam que o Brasil foi colonizado por degredados se baseiam mais nas suas próprias suposições do que em pesquisa sistemática, e que muitas das descrições que eles fazem são mais literárias do que históricas”. Eis um pensamento sóbrio, razoável e científico no meio de tanta politicagem e ideologia podre que contaminam nossa história e nossas vidas borrando algo tão importante e definidor de um povo quanto a sua história.