Já faz mais de mil anos que os vikings não estão mais no planeta Terra, ou em Midgard, como eles chamavam carinhosamente esse mundo. Agora eles estão em Valhalla. Pelo menos eles juravam que iriam para lá quando morressem: comer, beber, festejar e brigar eternamente no grande salão de Odin. Para conseguir o “ingresso” desse salão era só morrer valentemente no campo de batalha - agora, para onde será que os pobres camponeses que “lutavam” para plantar iam quando morriam? Seja como for, os vikings morreram; mas a gente está longe de deixá-los descansar em paz.
Vikings, The Last Kingdom, Assassin's Creed Valhalla, Viking's Valhalla, Thor: 1, 2, 3 e 4, O Homem do Norte... Esqueci de algum? Ah! Até o Kratos foi mandado para mitologia nórdica - ai da mitologia nórdica!
Nos últimos anos, os nórdicos se tornaram popstars entre os mais jovens. Os vikings foram trazidos das cinzas e não tiveram mais sossego; e os maiores responsáveis por essa fama são justamente os filmes, séries e jogos que fazem a gente mergulhar nessa cultura lendária. Lendária mesmo. Não à toa o também lendário compositor alemão Richard Wagner escreveu sua ópera épica O Anel dos Nibelungos totalmente baseada na cultura nórdica.
E isso é muito bom! Como escrevi em meu texto anterior aqui na Gazeta, essas mídias podem ajudar muito a despertar o gosto dos mais jovens (e até dos mais velhos) pela história e cultura de verdade. Personagens carismáticos e bem construídos, uma ambientação bem-feita, cenas históricas de batalhas, etc. Nesse conjunto está o segredo do sucesso para se vender uma boa história.
Mas aí entramos em um dilema: filmes, séries e jogos não têm obrigação nenhuma com a história. Pelo menos essa é a justificativa mais usadas por fãs e produtoras: "são apenas obras de entretenimento, onde o objetivo não é ensinar, e sim entreter. E vender". Faz sentido mesmo, embora nos últimos anos cada vez mais desenvolvedoras tem tentado mesclar a lúdico com o real, felizmente! Mas no caso dos vikings parece que ainda temos um longo caminho para isso acontecer. No duelo entre a história e a ficção, a ficção quase sempre ganha: é ela que fica na cabeça.
Já até perdi as contas de quantas vezes ouvi alunos e amigos dizerem que se pudessem voltar no tempo gostariam de viver nos países nórdicos para serem vikings. Curiosamente, todos eles são fãs de uma dessas obras sobre os nórdicos. Mas eu sempre pergunto: por que? E a resposta é rápida e direta: beber hidromel, comer javalis no grande salão, saudar os amigos berrando skål com a barba toda encharcada, "namorar" as lindas mulheres nórdicas. Muitos deles até usam o martelinho de Thor no peito e deixam o cabelo crescer para parecerem ainda mais viking.
No entanto, há outra pergunta que faz semblantes animados caírem: quem foi que disse que os vikings eram assim? Com certeza não foram os vikings, pois eles não gostavam muito de escrever sobre a própria vida, sabe? Deixaram a tarefa para os cristãos nos séculos seguintes ao seu sumiço. E quando cristãos escrevem sobre vikings, algumas coisas podem não bater muito com a realidade. Felizmente temos a arqueologia e antropologia para equilibrar mais as coisas.
Quem foi que disse que os vikings eram assim? Com certeza não foram os vikings, pois eles não gostavam muito de escrever sobre a própria vida, sabe?
Aliás, será que os vikings gostavam de ser vikings? É porque o termo “viking”, ou invasor (no sentido problemático mesmo) não partiu de um grupo de amigos buscando aventuras e diversão em seus navios. Partiu de uma necessidade de novas terras com um objetivo primordial: sobrevivência. E para muitos sobreviverem, muitos tiveram que morrer. Se a Escandinávia tivesse todos os recursos que a população precisava, os vikings nunca teriam sido vikings. Alguns especialistas como Neil Price até mesmo dizem que viking é um termo de uso incerto. É como alguém muito popular disse uma vez: “a realidade tende a ser decepcionante.”
Mas seria legal mesmo se todo mundo pudesse ser um viking Netflix: seríamos nobres com roupas de couro pretas slim, exploradores com lindos navios; comendo, bebendo e farreando quase 24 horas por dia com os manos. Analisando as probabilidades matemáticas, contudo, há uma grande e até indesejável chance de que tivéssemos sido simples camponeses trabalhando duro só para conseguir um pouco de comida todo dia; isso se não fossemos escravos conquistados de outras tribos nórdicas. Quase 100% da população nórdica era camponesa e pobre, então, a chance de que você ou eu não seríamos nobres vikings aventureiros era de quase 100%. Só isso.
Claro que essa consciência e leitura crua do mundo faz o romantismo das séries, filmes e jogos se quebrarem ao meio. Há quem não goste, mas considero que isso é bom. No final, ela nos ajuda a ver o quão pior era a vida no passado e que nossos ancestrais (sejam eles quem forem) perseveraram em seus desafios sendo muito mais fortes, resilientes e determinados do que qualquer protagonista histórico, fanfarrão e bêbado que a gente vê na TV.
Em memória deles não esqueça disso. E bom filme!
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