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Thiago Braga

Thiago Braga

Entender a história da guerra é entender a história dos homens. Uma nova coluna todo domingo.

Inventando o caminho do Samurai

Doutrinando em nome dos samurais – Parte 1

A última batalha dos samurais
A Batalha de Shiroyama de 1877 encerra a era dos samurais e dá início ao Japão Imperial (Foto: Wikimedia Commons)

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Se você tiver um filho, um sobrinho, um primo ou amigo entre 15 e 18 anos (ou mais até, quem sabe?) e que assista muitos animes japoneses, em algum momento você vai ouvir ele dizer que os samurais são os melhores, mais rápidos e honrados guerreiros da história. Se do ponto de vista lúdico não há mal algum em pensarem assim, do ponto de vista real essas habilidades e ideais foram criadas para fins perigosos e destrutivos, causando a morte de centenas de milhares de pessoas. Isso os animes não mostram. Imagino que muitos produtores e desenhistas nem saibam dessa verdade dolorosa porque muitos desses estudos acabam ficando nas "altas" prateleiras da academia e quase nunca saem de lá. Por isso, me senti num dever moral de fazer essa divulgação científica buscando os estudos mais recentes e referenciados sobre o assunto e expondo-os em um vídeo recente no meu canal Brasão de Armas derrubando os maiores mitos dos Samurais, e por tabela acabou sendo o vídeo mais assistido na estreia.

Era um vídeo realmente necessário no YouTube que está cheio de vídeos "motivacionais" falando sobre a tal honra e lealdade do samurai refletidos no seu antigo modo de vida. Eu mesmo vi comentários nesses vídeos de pessoas explicando como 'tem tentado viver os princípios dos samurais na minha vida' ou defendendo que 'precisamos resgatar os valores antigos dos grandes samurais'. Mas aí eu te pergunto: que princípios e que valores são esses? Esses vídeos parecem dar uma resposta bem fácil e até motivadora para o expectador. Mas para a gente ter a resposta histórica a essas perguntas, precisamos fazer outra pergunta que pode mudar tudo: princípios e valores de quem e de quando?

Inventando o caminho do samurai

Começando pelo começo: esse código de princípios e valores tem um nome em japonês: bushido. Bushi significa guerreiro e do significa caminho. Juntando as duas palavras temos o famoso "caminho do guerreiro". Esse código representaria toda a essência do samurai enquanto guerreiro: eles viveriam e morreriam seguindo os preceitos desse código universalmente reconhecido pelos samurais japoneses. Esse código faria parte do treinamento do guerreiro, que começava já na infância. Desse modo, "todos" os samurais estariam ligados a uma filosofia reconhecida por "toda" a classe, e que ditaria suas ações na vida e no campo de batalha.

Agora que entendemos o sentido básico do bushido, vem a pergunta mais difícil: quando? Aliás, essa é a pergunta mais importante e problemática de todas! Isso porque quando falamos de samurais, falamos de uma classe que surgiu no final do século XII e foi até o final do século XIX, quando foi definitivamente abolida pelo Japão Imperial na restauração Meiji após a famosa batalha de Shiroyama em 1877. Ou seja, temos um linha temporal contínua de cerca de 700 anos. Então, quando uma pessoa diz que os samurais tinham um código de conduta universal que regia sua existência enquanto guerreiro, ela tem que dizer quando! E é aí que a situação fica realmente complicada.

Quem disse e quando?

Um dos estudos mais importantes e referenciados sobre o assunto feito pelo doutor Oleg Benesch na Obra Bushido - Inventing the way of the samurai traz algumas conclusões esclarecedoras. A primeira é que antes do século XVIII o termo bushido nem mesmo existia no vocabulário japonês. Esse termo aparece pela primeira vez (que se tem registro, pelo menos) na obra Hagakure do samurai Yamamoto Tsenutomo, concluída no início dos anos 1700. E durante toda a obra o autor usa o termo meia dúzia de vezes apenas e sem explicar o sentido real da palavra, e muito menos indicando que bushido era uma filosofia entendida e compreendida pelos samurais. Aliás, nas vezes em que o bushido aparece ele está sempre relacionado a morte. Até um cachorro fantasma é colocado nesse contexto pelo autor. Ou seja, somente após 500 anos do surgimento da classe dos samurais é que esse termo aparece registrado pela primeira vez, e ainda assim com um sentido que nada tem a ver com o sentido moderno usado, como veremos mais a fundo na segunda parte dessa coluna.

Temos outro problema nessa terminologia: como vimos, bushi significava guerreiro. Mas é sabido que nem todo samurai era necessariamente um guerreiro: samurai era uma classe social e não uma classe de guerreiros. Resumindo: samurais eram samurais porque eram nobres, e não porque eram guerreiros. Isso quer dizer que era comum encontrar samurais que nunca tivessem dado um soco em ninguém. Por isso, ligar o termo bushido (e qualquer sentido antigo que ele tenha tido) aos samurais é outro problema grave carente de evidência científica.

Assim, de acordo com o especialista citado acima, antes do século XVIII é muito provável que nenhum japonês tivesse ouvido a palavra bushido e muito menos o que ela significava. E quando ela surgiu no século XVIII na obra Hagakure parece ter sido idealizada apenas pelo autor que a escreveu com uma semântica exclusiva em sua mente que nada tinha de comum com a classe samurai como um todo.

Mas se naquela época o bushido não pegou, na nossa pegou. E muito! No século XX o “caminho do samurai” ganhou seu sentido definitivo; os famosos 7 princípios do bushido. Uma nova forma de doutrinação, que começava nas escolas, preparava os japoneses a matarem e a morrerem numa obediência e devoção descontrolada que chocaria o mundo.

(continua)

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