Na primeira parte desta coluna nós vimos que o código de princípios éticos dos samurais, conhecido como bushido nunca existiu de fato. Não há registro de qualquer código, seja escrito ou oral, que regia universalmente “o caminho do guerreiro”. Vimos que a palavra bushido (semanticamente problemática, aliás) só surgiu tardiamente na história dos samurais: apenas cerca de 150 anos antes de seu fim definitivo, com o início da restauração Meiji na segunda metade do século XIX.
Agora, os samurais (ou que sobrou deles e seus descendentes) eram apenas párias na sociedade japonesa. Uns baderneiros desprezíveis que eram meros lembretes indesejáveis de um passado feudal e atrasado que os japoneses queriam esquecer; e esqueceram mesmo. No final do século XIX o Japão abriu as portas para o Ocidente abraçando tudo que eles tinham a oferecer: o Japão cresceu economicamente, e acima de tudo, militarmente.
Inventando o caminho do guerreiro
Mas do que adianta você ter grana e poder militar se você não mostrar para os outros? O Japão deve ter pensado nisso mesmo porque poucas décadas depois de sua ocidentalização eles já arrumaram uma treta pesada com a China em 1894 em busca dos recursos que o gigante tinha em seu território que manteriam a sua indústria a todo vapor. Japoneses e chineses brigam; japoneses ganham a briga. Mas um vizinho maior ainda queria fazer parte da festa: a Rússia também queria a China! Em 1904, japoneses e russos brigam; japoneses ganham a briga, de novo!
A partir de 1905 os japoneses eram ricos, desenvolvidos, e a superpotência militar asiática! Como tudo isso pode ter acontecido em tão pouco tempo? Alguns estudiosos dizem que um sentimento de admiração começou a tomar conta dos japoneses que buscavam uma causa para seu sucesso. Os japoneses estavam em busca de uma alma. E quem diria que essa “alma” seria os antigos e infames samurais. No início dos 1900 os esquecidos guerreiros e nobres japoneses voltariam a vida e um homem seria responsável por isso: Nitobi Inazo.
No entanto, ele trouxe isso de fora: nos anos anteriores Nitobi viajou para a Inglaterra. Ele ficou admirado com o que viu. Aqueles castelos gigantes, bem cuidados, as armas e armaduras medievais enchendo os salões da Torre de Londres, os códigos cavaleirescos que pareciam reger a vida do povo britânico. Ele encontrou lords que traçavam até sua linhagem a nobres e guerreiros britânicos antigos. "Por que o Japão não tinha isso?" , ele deve ter se perguntado, não sabemos, mas coincidentemente poucos anos depois, ele tratou de escrever a versão japonesa dos códigos dos cavaleiros europeus na sua obra de 1899: Bushido – A Alma do Japão. Essa obra mudou a forma como o mundo via o Japão e a sua história.
A ideologia da morte
Nesta obra, Nitobi, ele próprio um cristão, diga-se de passagem, lembra que o Japão já teve seus nobres “cavaleiros medievais” também, e que ao contrário do que diziam, eles eram guerreiros honrados e leais, que desde os tempos mais antigos também viviam sob um código de honra e conduta inspirador. Nesse momento Nitobi inventa os princípios do bushido: lealdade, fidelidade, coragem, justiça, educação, humildade, compaixão, honra e acima de tudo, viver e morrer com dignidade. Sim, esses princípios foram inventados por Nitobi como mostra um dos estudos mais importantes sobre o assunto feito pelo historiador Oleg Benesch na já citada obra Bushido – Inventando o caminho do samurai. Como já dito antes, não há qualquer evidência histórica de qualquer código samurai regido por esses princípios durante todos os séculos de sua existência. Portanto atribuir esse código aos samurais é anacronismo histórico flagrante, sem respaldo diacrônico. É isso que a obra denuncia de forma categórica.
E realmente, os japoneses nem ligaram para isso, porque a obra só foi traduzida para o japonês (sim, ela primeiro foi publicado no ocidente e em inglês) apenas 10 anos depois de sua publicação. Mas quando chegou no Japão e caiu nas mãos dos políticos japoneses, eles viram em sua frente uma oportunidade única de divulgar uma mentira histórica para seu próprio bem: resgatar os guerreiros renegados a um patamar lendário de lealdade e submissão que poderia e deveria ser seguido pelos japoneses do século XX. Pense como um político: o que pode ser melhor do que um povo cegamente leal a você? E o bushido oferecia exatamente essa perspectiva ao Japão Imperial.
Então, a partir de 1920 as escolas e o exército passaram a ter o bushido como disciplina obrigatória nos currículos: crianças e jovens militares seriam doutrinados a seguir os passos dos gloriosos "guerreiros injustiçados". O povo japonês aprenderia a ser leal e submisso ao imperador como os samurais eram para com seus senhores feudais. E incrivelmente, essa ideia colou. De repente os japoneses descobriram que tinham heróis lendários dignos de serem imitados. E finalmente, depois de décadas de doutrinação nas escolas, chegou a hora do imperador contemplar a lealdade de seus servos.
A partir de 1939 centenas de milhares de japoneses entregaram suas vidas em missões suicidas em nome do seu imperador, que com o bushido, havia sido promovido a um nível de quase deus (ou deus mesmo). Sem questionar suas ordens os pilotos kamikazes, nomeados após os sagrados tufões que salvaram os japoneses das invasões mongóis, se lançavam sobre os navios americanos nas sangrentas Batalhas de Midway e do Golfo do Leyte. Recebiam as ordens para se matar, e se matavam. Um nacionalismo mordaz e sem limites. Tudo isso alimentado por uma filosofia guerreira que nunca existiu: o bushido. Mas a culpa não é dos samurais: eles não criaram isso; criaram isso em nome deles. Aliás, nunca houve qualquer filosofia unificadora de classe, nem oral e nem escrita, do guerreiro japonês; o que unificou os japoneses foi a espada, ou melhor, o arcabuz europeu.
E até hoje muitos continuam espalhando a farsa histórica do bushido através de vídeos, livros e artes marciais que se dizem disseminadoras do antigo “caminho do guerreiro”, tentando se conectar a um código moral ancestral que nunca existiu, como se ainda tivesse sido algo bom. Mas não foi. Nem para o Japão e nem para os Japoneses que caminharam para apenas um destino: sua destruição total.
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