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Mortal Kombat foi uma febre nos “flipers” dos anos 90 aqui no Brasil; versões mais recentes são muito mais apelativas na violência explícita.
Mortal Kombat foi uma febre nos “flipers” dos anos 90 aqui no Brasil; versões mais recentes são muito mais apelativas na violência explícita.| Foto: Reprodução

Quem acompanha meu trabalho no YouTube sabe que videogames fazem parte integral das minhas análises históricas do canal. Videogames fizeram parte de grandes momentos da minha infância e adolescência. E não estou sozinho: milhões de jovens e adultos lembram com muito carinho dos seus jogos. Isso explica a treta em que Lula se enfiou quando disse que jogos violentos prejudicam a mente dos jovens. Não sei de onde ele tirou aquilo, mas eu fiquei com a cara quente e resolvi ir atrás da ciência e colocar aquela afirmação à prova.

Admito que já fui com meu viés gamer inflamado: para mim não há uma relação de causa e efeito materializada nesse assunto. Obviamente, não entro aqui na questão moral ou até religiosa em relação a jogos violentos: cada família ou religião pode ter um significado muito particular de violência, por isso compreender a dimensão da palavra pode ser muito mais complexo do que parece.

Mas o que seria violência per se? Um simples soco na cara ou uma decapitação podem ser colocados na mesma categoria de violência. Para definir isso com mais precisão, existem os adjetivos como “leve”, “moderada” ou “explícita” para ajudar na percepção. E aí, novamente, esses adjetivos também podem ser carregados de viés. Mas agora vamos sair do campo interpretativo e vamos para o campo científico. Quais são os dados que provam, ou não, que jogos violentos podem afetar a mente das pessoas, em especial dos mais jovens?

O debate sobre o efeito de jogos violentos sobre o comportamento não é tão simples como “a ciência diz que não”

Um artigo recente no jornal O Globo já “respondeu” à pergunta e bateu o martelo, sob o título “Os games estimulam atos violentos como afirmou Lula? Não, diz a ciência”. Ora, quem lê um título e um artigo desses não precisa de mais nada, não é? Já que a “ciência” falou, tá falado... Certo? Errado! Primeiro, o que é a “ciência” de que O Globo fala? Será que a “ciência” é unânime nesse assunto?

Resolvi problematizar o assunto e checar na Pubmed, que é a maior plataforma de busca de periódicos científicos do mundo. Tentei fazer uma pesquisa bem neutra e direta: “violent games young people” (jogos violentos pessoas jovens) O primeiro artigo que aparece é bem recente, de 2021: “Violent Video Games and Aggression Among Young Adults: The Moderating Effects of Adverse Environmental Factors” (“Videogames violentos e agressão entre jovens adultos: os efeitos moderadores de fatores ambientais adversos”). O estudo já começa dizendo que “as pesquisas estão divididas em relação aos efeitos de jogos violentos”. E, em seguida, os autores dão o parecer do estudo sobre o assunto: “Este estudo fornece evidências às afirmações de que jogos violentos estão associados a comportamentos agressivos em jovens adultos”. Portanto, já neste primeiro artigo temos o reconhecimento por parte de pesquisadores citando a polarização de resultados na academia, e concluindo que há relação entre jogos violentos e comportamentos agressivos de jovens adultos.

Já um outro artigo, publicado em 2019 sob o título “Violent video game engagement is not associated with adolescents’ aggressive behaviour” (“Videogames violentos não estão associados a comportamentos agressivos de adolescentes”), mostra o contrário: “não há relação entre jogos violentos e comportamento agressivo real”. Portanto, apenas nesses dois estudos podemos ver a discordância de interpretações na academia sobre o assunto. Poderíamos continuar aqui por horas, mostrando o debate inconclusivo da ciência sobre o assunto. Portanto, o debate sobre o efeito de jogos violentos sobre o comportamento não é tão simples como “a ciência diz que não”, conforme citado pelo O Globo.

O fato é que, como alguém que cresceu jogando videogames, muitos deles violentos (jogava escondido dos meus pais... Quem nunca?), seria muito bom escolher apenas um lado da ciência para afagar meu viés. Contudo, o debate é sério e importante: não pode ser resumido a “eu sempre joguei jogos violentos e nunca tive vontade de matar ninguém” ou “o estudo X disse que não é”. A ciência continua buscando, e nós precisamos continuar buscando a ciência.

Outro fato é que os jogos evoluíram muito: nos gráficos e na violência também. Você se lembra do primeiro Mortal Kombat dos fliperamas? Virou uma febre mundial justamente por causa da violência explícita: arrancar cabeças, sangue voando para todo lado, tudo com uma qualidade visual bem primitiva, mas que conquistou o mundo. Quando eu era criança, lembro de ficar meio chocado com os “fatalities” do jogo, e mesmo assim gostar demais.

Mas os jogos recentes da franquia atingiram um nível de brutalidade tão insana que mesmo “jogadores raiz” como eu viram o rosto: num desses “fatalities”, o personagem arranca o cérebro do outro e o mastiga, com sangue voando para todo lado. E as cenas de raios-X que ficaram famosas nos últimos lançamentos? Nelas, dá para ver em detalhes os ossos se quebrando ao meio, hemorragias internas, órgãos sendo perfurados e dilacerados... Todo tipo de sadismo e violência desumana você encontra nos últimos Mortal Kombat. Você não é passivo: você controla cada movimento dos personagens ali. Será que isso não pode afetar em alguma medida a mente dos mais jovens e vulneráveis? Nesse tipo específico de violência sádica, eu tendo a acreditar que sim. Não é apenas o fato de matadores em série disparando contra escolas: podem influenciar situações do dia a dia como maridos agredindo esposas, pais agredindo filhos, filhos agredindo pais.

Muitos jogos foram banidos em vários países ao longo das últimas décadas. Mas a violência continuou, com ou sem essas medidas drásticas

Novamente, precisamos levar em conta que a ciência continua dividida neste assunto: não há unanimidade. Quem insiste em dizer que esse assunto é preto ou branco não está a par da longa e real discussão científica.

Enfim, o jogo está aberto e felizmente a ciência está tentando fazer a parte dela: e, para continuar, precisamos de mais ciência e menos censura. Muitos jogos foram banidos em vários países ao longo das últimas décadas. Mas a violência continuou, com ou sem essas medidas drásticas. E não são apenas os jogos violentos que podem (ou não) afetar a mente dos jovens: fatores mentais e sociais podem desencadear muito mais violência do que videogames.

Tudo isso precisa ser debatido em conjunto, e não isoladamente. O que é inadmissível é um Estado democrático determinar o que entra ou não na casa das pessoas: os pais são os reguladores de seus lares e podem e devem estar atentos ao que seus filhos jogam, e até colocar limites. Meus pais tentaram... Ainda bem que nem sempre conseguiam.

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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