A história sempre foi manipulada para fins políticos: eventos que aconteceram há séculos são trazidos ao presente para se encaixarem em agendas políticas e ideológicas. Isso já não é novidade para ninguém. Assim, para se encaixarem nessas agendas, esses eventos não podem ser trazidos de forma crua e objetiva para o presente: ninguém vai engolir uma narrativa feia. Ela precisa receber uma embalagem bonita, e para isso a história precisa ser reimaginada e reescrita. Nesse texto vamos apresentar a narrativa dos apologistas que querem vender essa “linda” história dos muçulmanos em Al-Andalus para o mundo.
Olha um bom (ou péssimo?) exemplo aqui: em 2009, Barack Obama fez um discurso em Cairo no qual proclamava a importância da aproximação entre EUA e o mundo muçulmano. Lá pelas tantas, ele solta que “o Islã tem uma tradição orgulhosa de tolerância. Nós podemos ver isso na história de Andaluzia e Córdoba durante a Inquisição.” Hã?! Imaginem o arrepio nos apologistas muçulmanos ouvindo isso do político mais poderoso do planeta. Ignoremos o crasso erro histórico de atrelar a Inquisição Espanhola, que começou na segunda metade do século XV, a um califado que caiu no início do século XI. Só errou uns 400 anos! Mas isso prova que ele deve ter pegado essa “história” de algum blog pró-muçulmanos na América. De qualquer forma, o que vemos aqui é a história sendo “narrada” para servir a interesses políticos flagrantes, como agendas pró-imigração muçulmana, que trazem Al-Andalus e sua tolerância como exemplo para os dias de hoje e como os europeus podem se beneficiar dessa chegada muçulmana novamente. O que poderia ter mudado em apenas mil anos?
De toda sorte, Obama revela para nós a “embalagem bonita” que vende a história dos muçulmanos na Península Ibérica, ou Al-Andalus, como era referida pelos mouros: a “tolerância!” Tolerância essa levada pelos próprios muçulmanos e que foi “instaurada” por eles para ligar pacificamente as três religiões abraâmicas ali. E foi graças a essa “tolerância” entre os povos que a ciência e a tecnologia explodiram na Península Ibérica. Ou seja, o pilar de tudo era a bendita tolerância e convivência liderada pelos muçulmanos. Uma das obras mais famosas nesse movimento apologético e romântico em prol dos muçulmanos é a obra O Ornamento do Mundo, escrito pela professora Maria Rosa Menocal, que tem sido largamente criticada nos últimos 20 anos por medievalistas por sua falta de rigor histórico e científico, bem como pelo grande apelo romântico e ideológico (como mostrei em meu recente vídeo no meu canal Brasão de Armas sobre a violência e intolerância muçulmana em Al-Andalus). Ela mesma diz em seu livro, na seção de "conversa com os leitores" que em "grande medida" a tolerância é que produziu as maravilhas em Al-Andalus.
Só que Maria Rosa e os apologistas têm uma estratégia simplista para provar essas besteiras: pegam indivíduos isolados e generalizam para a maioria. Um dos maiores exemplos citados por eles de que cristãos e judeus ‘podiam ocupar cargos importantes no califado graças à tolerância muçulmana’ é o cristão Recemundo, o bispo de Elvira, e o judeu Hasday Shaprut. Forçando muito, talvez encontrem mais uns três ou quatro que mal são citados nas crônicas nos 700 anos de dominação islâmica. Pronto! Se essa “meia dúzia” conseguiu vencer na vida, é claro que os outros milhões de cristãos também conseguiriam. É ou não é uma visão fofa da história? Por outro lado, vejam que caso curioso: temos várias gerações de judeus colocados nos mais altos cargos políticos e administrativos desde a fundação do Reino de Portugal, mas de repente só os muçulmanos fazem essa proeza da tolerância.
Só existe um pilar indispensável que produz a melhor ciência e tecnologia: grana! Grana e recursos, o Califado Omíada tinha; e muito.
Mas, como vamos ver nas próximas colunas, intolerância, discriminação e violência eram as leis que prevaleciam na Península Ibérica dominada pelos muçulmanos.
De fato, falar sobre isso num discurso político é complicado. Imaginem se Obama mencionasse no discurso o estupro de centenas de mulheres, a destruição de igrejas, a profanação de objetos sagrados e as cabeças cortadas espetadas em estacas a mando de líderes muçulmanos, conforme relatam as próprias crônicas muçulmanas... Ia pegar muito mal, não é?
Mas não nos desviemos do assunto; vamos nos concentrar na apologia apenas. E os defensores da “tolerância” muçulmana não param: eles mostram descrições “maravilhosas” que pessoas fizeram de Al-Andalus. Um dos mais famosos exemplos que eles citam é de uma abadessa chamada de Rosvita de Gandershein. Ela morava na região da Alemanha, e depois de ouvir alguém falar sobre Córdoba, resolveu escrever o que ouviu. Que relato confiável, não acham? Ela foi uma dessas pessoas que escreveram sobre Al-Andalus mas nunca nem pisaram lá. E é exatamente isso que mostra a obra Cities, Texts and Social Networks, 400–1500 [Cidades, Textos e Redes Sociais, 400-1500]: “Com a exceção de Ibn Hawqal, que visitou Córdoba em 948 e deixou sua descrição entusiástica, nossa imagem de Córdoba vem largamente de obras escritas muito tempo depois que o Califado caiu, e as obras originais dos historiadores da época como Al-Razi foram perdidas.” E conclui dizendo que as descrições de Córdoba “são descrições posteriores, feitas com emaranhados de materiais derivados de tradição oral e compilados para refletir o gosto do autor e seu propósito de escrita.” Ou seja, quase tudo que ouvimos de Córdoba não passa de narrativas descontextualizadas por pessoas que nunca visitaram a cidade, ou viveram muito tempo depois de sua queda no início do século XI e apenas escreviam o que ouviam falar. E quem disse que apologistas precisam de contexto histórico de alguma coisa? É tipo alguém no ano 3000 ouvir o samba “Cidade Maravilhosa” e achar que o Rio de Janeiro era um paraíso onde as pessoas viviam seguras, em paz e harmonia. Cariocas como eu, sejam moradores de favela ou da Zona Sul, sabem que a tensão, insegurança e medo é uma constante no nosso dia a dia. Como vamos ver nas próximas colunas, porém, o Rio é um verdadeiro paraíso se comparado com a realidade diária de Al-Andalus.
Nas condições culturais que prevalecem no Ocidente hoje, o passado precisa ser comercializado, e para ser comercializado ele precisa estar numa embalagem bonita.
Mas eles ainda têm mais apologias à “tolerância” muçulmana: citam os avanços científicos e tecnológicos que o Califado produziu. Tudo isso só foi possível graças à base fundamental criada pelos muçulmanos em Al-Andalus: a tolerância e convivência. Estranho: e a quantidade de ciência e tecnologia que a Alemanha nazista, União Soviética, Estados Unidos e o Reino Unido produziram durante a II Guerra Mundial? Alguém aí acha que tinha um ambiente de paz e tolerância na Europa em 1939 para surgir aquela explosão de inovação, ciência e tecnologia que mudaram nossas vidas? Não sei quanto a vocês, mas sempre acreditei que só existe um pilar indispensável que produz a melhor ciência e tecnologia: grana! Grana e recursos, as potências da II Guerra tinham. E o Califado Omíada também; e muito. Como o professor espanhol Eduardo Manzano Moreno no seu artigo “Qurtuba” atesta sobriamente: “A extraordinária produção intelectual e artística gerada por aquele Califado não se deu por causa da existência de um ambiente de tolerância, mas pelo aumento de recursos gerados nessa época e dos quais os califas omíadas e seus cortesãos eram grandes beneficiários.”
Tão óbvio, né? Esse califado que governou a Península Ibérica era dono dos maiores recursos do mundo, pois na época era o maior império do mundo. Essa era a “maravilha” que fazia a ciência em Al-Andalus brotar de todas as partes do Império. Com grana você compra as maiores mentes do mundo, as melhores artes do mundo, os melhores castelos do mundo: seria legal imaginar castelos sendo feitos com tolerância e não com dinheiro. Ora, o mesmo aconteceu com Portugal, Espanha, Holanda e Inglaterra nos séculos seguintes: tinham todo o dinheiro e recursos do mundo, e por consequência revolucionaram o mundo em todos os sentidos. Mas para um discurso ideológico e político, esse negócio de “dinheiro” não pega muito bem não: o que pega bem é um ideal que fez a maravilha toda acontecer, que nesse caso é a tolerância, por mais estúpido que isso possa parecer.
Portanto, é exatamente isso que tem acontecido nos últimos 100 anos com a história da Península Ibérica com a invasão dos muçulmanos a partir de 711: essa invasão histórica tem sido romantizada por estudiosos e políticos, e manipulada para fins ideológicos descarados. Eis as palavras do renomado professor Richard Fletcher, em sua obra Moorish Spain [Espanha Mourisca], a respeito desse romantismo sobre Al-Andalus: “nas condições culturais que prevalecem no Ocidente hoje, o passado precisa ser comercializado, e para ser comercializado ele precisa estar numa embalagem bonita.” Como veremos na próxima coluna, nos últimos vinte anos os mais renomados eruditos têm denunciado abertamente essa contaminação ideológica e política na história da Península Ibérica: essa “roupa bonita” está manchada de muito sangue, terror e discriminação... E estamos aqui para contar essa história.
PS: Para uma revisão bibliográfica extensa sobre o assunto, não deixe de assistir ao meu vídeo sobre a violência e intolerância muçulmana em Al-Andalus.
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