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Thiago Braga

Thiago Braga

Entender a história da guerra é entender a história dos homens. Uma nova coluna todo domingo.

Rainha Ana de Souza e sua guerra pelo controle da escravidão

(Foto: Wikimedia Commons)

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“Mas Thiago, o título correto não deveria ser: Rainha Ana de Souza e sua guerra CONTRA a escravidão?” Não me surpreenderia se algum leitor que tenha estudado alguma coisa sobre esta famosa rainha de Angola, conhecida localmente como Nzinga, concluísse que o título tem um erro de sentido terrível. Afinal, alguém que luta por alguma coisa, luta a favor dessa coisa; nesse caso, a escravidão. Mas não, não pretendo corrigir meu título e ele ficará assim até o final do texto, no qual pretendo explicar com mais detalhes o porquê dessa declaração menos popular. Vou aproveitar que aquela besteira de “lugar de fala” (seja lá o que isso quer dizer numa democracia) não existe mais, né... Ou ainda existe?

Rainha Ana de SouzaUma guerreira contra a escravidão do seu povo e a favor da escravidão dos outros. (Foto: wikimedia commons)

Seja como for, Nzinga é considerada uma heroína em Angola; tem estátuas suas lá e em 2013 ganhou até um filme contando sua luta e resistência contra a escravatura, ou seja, o comércio de escravos com os europeus, especificamente os portugueses. Com isso, fica fácil reafirmar o senso comum de que a escravatura era um negócio dos brancos, e ponto final. Hoje em dia estudar história tem ficado muito simples apesar de tantos estudiosos se dizerem seguidores da Escola dos Annales e adeptos da história-problema de Marc Bloch e companhia. Mas se hoje nada é simples, mesmo com todos os avanços nos direitos humanos e liberdades individuais, dizer que nos séculos XVI e XVII as coisas eram terrivelmente complicadas parece até eufemismo. E terrivelmente complicada era a escravatura.

O papel dos europeus nesse comércio desumano iniciado na África é inquestionável. Não há dúvidas que eles foram grandes responsáveis por essa tragédia humanitária. Mas eles não fizeram isso sozinhos: a proporção colossal da escravatura até meados do século XIX só foi possível graças a cooperação e interesse de povos e reinos locais. No entanto, dizer isso, embora não devesse ser novidade para ninguém, parece um tabu sobre o qual poucos querem falar e muitos não querem deixar que outros falem, sob pena de serem taxados de colonialistas pró-escravidão. Contudo, como aqui no Gazeta do Povo podemos dialogar francamente, vamos continuar.

Ana de Souza queria o monopólio dos escravos só para ela, e não permitiria que ninguém mais o tivesse.

Antes de voltarmos a Nzinga, vamos a um contexto rápido, mas importante: ao contrário do que muitos podem pensar, a escravatura africana em sua gênese se deu de maneira pacífica e amistosa entre líderes europeus e africanos. Quando analisamos cartas contemporâneas trocadas entre os reis do Congo e Portugal (disponíveis na Torre do Tombo, em Lisboa) podemos perceber, já no início do século XVI, uma relação amigável entre eles. O rei africano aprende português, se torna cristão e ganha um nome cristão: Afonso I. E desde as primeiras cartas disponíveis na compilação quinhentista conhecida como Monumenta Missionaria Africana já vemos escravos sendo mencionados por ambos os lados como parte natural de seu negócio.

Durante todo o século XVI esse tipo de relacionamento acontece de maneira bem tranquila. A tranquilidade do Congo acaba quando Portugal começa a ter contato com outras tribos e negocia escravos com eles. O Rei Afonso insiste para que os portugueses façam negócios só com ele, relembrando-os de que ele sempre forneceu “escravos sem conta” aos europeus em suas praias. Ora, o reino do Congo era o mais poderoso na África subsaariana justamente pela vantagem tecnológica e militar que o recente contato de “irmão” com os portugueses trazia a ele. E ele sabia que esse poder poderia chegar a outros povos da mesma forma que chegou a ele. Em suas cartas enviadas a Portugal vemos o medo que ele tinha de perder o monopólio do comércio de escravos que há décadas estava em suas mãos. E esse medo de Afonso era justificado e tinha nome: Matamba, um reino importante que futuramente viria a ser Angola.

Monarcas, líderes e mercadores influentes brigavam entre si pelo controle do tráfico. Era um conquistando e até matando o outro para terem a vantagem no negócio

Ao longo dos séculos, Angola se tornou o maior fornecedor de escravos para o Brasil. E poucos nomes se destacam tanto na escravatura quanto o da princesa e depois monarca Nzinga, batizada à época como Ana de Souza. Na excelente obra “The Slave Trade”, escrito pelo renomado historiador Hugh Thomas, vemos a rainha Nzinga incomodada com o controle dos portugueses na região. E o motivo era simples: os portugueses podiam escravizar outros povos e teriam o apoio dela no processo (como de fato tiveram, não só dela, como essencialmente de todos os outros povos com os quais tiveram contato na África); mas escravizar seu próprio povo estava fora de questão. Não só para ela, diga-se de passagem: escravizava-se os do outro, não os deles. Os portugueses, contudo, tinham o apoio de mercadores influentes que continuavam fornecendo os escravos de Matamba e outras regiões do reino, mesmo sem a autorização dela. Essa era a dinâmica na África pelo domínio da escravatura: monarcas, líderes e mercadores influentes brigavam entre si pelo controle do tráfico. Povos africanos conquistando e até matando outros para obterem vantagem no negócio.

Sim, eles queriam ser protagonistas (e eram, de fato) em um comércio que viam como deles também. Nas palavras do professor Bet Hwell Allan Ogot, na obra História Geral da África – Vol. V na página 23: "Em geral, os soberanos africanos se reservavam a prioridade neste comércio, porém, negociantes negros desempenhavam também um papel muito importante." E ele nos mostra como era a realidade em Angola: “Mesmo em Angola os portugueses capturavam um pequeno número de escravos, deixando aos agentes recrutados no seio da população local o cuidado de comprá-los ou de capturá-los no interior”.

Ana de Souza queria o monopólio dos escravos só para ela, e não permitiria que ninguém mais o tivesse; matou inclusive seu irmão e os filhos dele para ascender ao poder de Matamba. E com essa “garra” toda, a sorte dela e dos povos vizinhos iria mudar a partir do início do século XVII com a chegada dos holandeses. Ela provou na prática o ditado “o inimigo do meu inimigo é meu amigo.” E os holandeses eram inimigos dos portugueses.

O professor Hugh continua explicando que em troca da poderosa ajuda protestante para conter a influência católica na região, ela se alia aos holandeses e empreende uma “série de guerras” a tribos vizinhas de Matamba para fornecer mais escravos aos holandeses além dos que ela poderia oferecer. E os holandeses, é claro, aceitam o negócio sem pestanejar! Agora, era a vez deles cumprirem sua parte no acordo: guerra contra os portugueses! O conflito ocorreu na África, Ásia e aqui no Brasil também; algo jamais visto até então na história mundial que levou o historiador inglês Charles Boxer a dizer que essa guerra deveria ser considerada a ‘verdadeira primeira guerra mundial’ pela escala intercontinental e geopolítica que desencadeou. De qualquer forma, Ana consegue sua vitória e recupera o controle do comércio de escravos com a reconquista de Luanda, apenas para perder novamente, anos depois, para os portugueses.

Rainha Nzinha, a Ana de Souza: uma heroína abolicionista escravocrata. Libertadora do seu povo; escravizadora dos outros. Uma grande jogadora disposta a jogar no time que desse a vitória a ela. Suas estátuas continuam de pé em Angola, e nos livros ela ainda é vista como um grande exemplo na luta contra o colonialismo europeu, independente da destruição que ela tenha causada aos outros. Ela tem uma boa narrativa; e você sabe que uma boa narrativa pode justificar tudo. Afinal de contas, se alguém é herói ou vilão, só depende dos olhos de quem vê.

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