Em uma decisão histórica do mês passado, a Suprema Corte brasileira concluiu que comunidades indígenas têm direito à terra, independentemente de quaisquer títulos de propriedade. A Corte reconheceu o direito à terra com base somente em alegações de ancestralidade ou originalidade. Que outros brasileiros habitem e usem a terra hoje segundo as regras legais estabelecidas é irrelevante, concluiu a Corte, porque os povos indígenas ocuparam historicamente a terra antes da chegada dos europeus. Isto é verdade no que concerne à inteireza do Brasil, bem como à dos Estados Unidos. Em 1955, porém, a Suprema Corte dos EUA decidiu um caso no qual concluiu pelo resultado oposto, preservando, assim, a soberania do país.
O caso dos EUA envolveu uma tribo indígena, conhecida como Tee-Hit-Ton, que habitara uma área próxima à cidade de Wrangell, no sudeste do Alaska, por milênios. Os Tee-Hit-Ton nunca obtiveram, da parte de qualquer governo externo, nenhum direito legal à terra na qual moravam. Estiveram sujeitos a um mínimo controle do Império Russo antes de a terra ser vendida para os EUA em 1867. Em 1907, o governo dos EUA determinou que a área seria uma reserva florestal nacional. A tribo Tee-Hit-Ton, inferior a cem almas, continuou a viver na área. Durante a II Guerra Mundial, porém, o Congresso autorizou o corte das árvores da área para uso bélico, e em 1951 autorizou uma empresa concessionária a explorar os recursos da região. A tribo Tee-Hit-Ton processou, alegando que as árvores (e a terra) lhe pertenciam.
A tribo Tee-Hit-Ton alegou que, quando os EUA adquiriram o Alaska da Rússia em 1867, ela possuía a propriedade originária da terra. Isto se baseava, em parte, na história da área. Em 1821, o czar Alexandre I da Rússia publicou um édito no qual a Russian American Company “não estenderia à força as possessões da Companhia às regiões habitadas por tribos”, e limitaria as interações com as tribos à “troca, por mútuo consentimento, de mercadorias europeias por peles e produtos nativos.” A lei que criou o Território do Alaska em 1884 indicou que “os índios […] não devem ser perturbados em quaisquer terras em seu uso, ou ocupação, ou reivindicadas por eles.” Os nativos tinham uma alegação forte para reivindicar a terra.
Em 1955, porém, a Suprema Corte dos EUA decidiu um caso no qual concluiu pelo resultado oposto, preservando, assim, a soberania do país
Mas a Suprema Corte dos EUA rejeitou a teoria de que os povos indígenas, tais como o Tee-Hit-Ton, possam reivindicar direitos sobre a terra com base em meras alegações de ancestralidade. Sob a lei dos Estados Unidos, os povos indígenas eram meros ocupantes da terra, tendo somente os direitos dados a eles pelo Estado, que é soberano. A Corte indicou que “o povo dos Estados Unidos tem compaixão pelos descendentes dos índios que foram privados de sua [terra] pelo ímpeto da civilização”, mas que os índios “partilharem dos benefícios de nossa sociedade” era uma questão de “graça, não […] de obrigação legal.” Noutras palavras, o governo dos EUA reconheceria o direito à propriedade só se fosse assegurado pelo governo dos EUA. Os direitos à terra, segundo a lei dos EUA, originam-se da lei dos EUA, não do estado de natureza, nem dos direitos humanos, nem do fato de que o povo outrora lá vivera.
Esse resultado não deixou os povos indígenas sem direito à reivindicação da terra. O Congresso pode dar-lhes quaisquer terras, desde que compense quem tem o direito sobre elas. Se o Congresso der aos povos indígenas direito a uma terra, e depois o retirar, terá de pagar-lhes, como exigido pela Constituição. (Os EUA já fizeram isso, pagando muitos bilhões de dólares a povos indígenas.)
Tudo o que o caso Tee-Hit-Ton decidiu é que a Justiça não pode tomar a terra e dá-la a um povo indígena com base no mero argumento de que ele estava aqui antes. A lógica é simples: os povos indígenas já ocuparam toda a América, e portanto uma reivindicação baseada apenas no direito ancestral ou originário poderia significar desde uma litigância infindável até o fim do país.
O caso diante da Suprema Corte brasileira era bem similar ao do Alaska. Surgiu de uma disputa no estado de Santa Catarina, no qual a tribo xokleng alegou ter sido expulsa, injustamente, de sua terra ancestral pelos fazendeiros. A Corte tinha que decidir entre duas teorias legais: segundo uma delas, chamada de teoria do “marco temporal”, a data para determinar quem possuía a terra era 1988, quando o atual Estado brasileiro fora criado pela Constituição Federal. Os xokleng não moravam na terra em 1988, tendo sido desalojados várias décadas antes, e portanto não teriam direito a reivindicá-la. Segundo outra abordagem, chamada de “indigenato”, os xokleng teriam direito à terra porque eles outrora a habitaram. Essa é a teoria rejeitada rejeitada pela Suprema Corte dos EUA, porém aceita pela Suprema Corte brasileira no mês passado.
Os conflitos entre o direito à terra dos atuais ocupantes e o dos pretéritos ocupantes indígenas são questões difíceis que não podem ser reduzidas a argumentos simples, tais como “eles estavam aqui primeiro.” Comunidades indígenas são solidárias e amiúde precisam de ajuda. Mas direitos indígenas amplos correm o risco de frustrar expectativas e investimentos estabelecidos. Os atuais proprietários rurais investiram tempo e dinheiro na terra, podendo ser tudo em vão.
Ademais, a mudança de regras legais muda incentivos, amiúde trazendo consequências não-intencionais. Essa decisão incentiva os nativos a reivindicarem terras, mesmo que não tenham a menor conexão com elas. Todo o Brasil se torna um alvo para tais reivindicações. Do outro lado, se os proprietários rurais tiverem recompensas quando a terra for devolvida aos índios, eles terão incentivos para plantar reivindicações em novas áreas que possam lhes render um bom dinheiro na devolução.
O maior problema da decisão do STF brasileiro é que ela tenta resolver essa complicada questão. Ao decidir contra o direito ancestral, a Suprema Corte dos EUA deixou nas mãos do legislativo as questões de quem é o dono da terra e de como é melhor tratar comunidades indígenas. Com tanta coisa em jogo e com riscos tão grandes, são os norte-americanos ou os brasileiros que devem decidir essas questões, em vez de um punhado de juízes não eleitos.
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