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Qual é o papel adequado dos tribunais numa democracia?
Após séculos de experiências democráticas, não há uma resposta fácil para essa questão simples que ainda confunde democracias por todo o planeta. Quando o governo está dividido, como nos Estados Unidos e no Brasil, o problema desponta com frequência.
Nos EUA, uma Suprema Corte conservadora invalidou várias das políticas do Presidente Biden alegando que elas excediam sua autoridade constitucional. Houve clamores para retirar o poder da Suprema Corte, ou para recriá-la. A sua legitimidade está na maior baixa de todos os tempos.
No Brasil, um ministro do Supremo Tribunal Federal recentemente derrubou um estatuto (aprovado em 2013) que regulava o garimpo, baseando-se em princípios como o direito dos povos indígenas e direitos a um ambiente limpo. Em resposta, o Senado brasileiro está pensando numa emenda para retirar esse poder.
O papel da Suprema Corte em ambos os países está em disputa.
Como ponto de partida, democracia significa governo da maioria. O povo vota em quem ele quer pôr no comando, e os políticos, sabendo que podem ser descartados pelos eleitores se fizerem um mau serviço, têm incentivos para adotar políticas populares. O Congresso deve ser o local onde as leis são feitas. As eleições são importantes, como o presidente Barack Obama notoriamente dizia.
Mas dar às maiorias o poder para legislar significa, também, dar-lhes poder para fazer leis que favorecem a maioria em detrimento da minoria. No limite, as maiorias políticas poderiam simplesmente tomar a riqueza da minoria, banir práticas religiosas ou culturais de minorias, ou infernizá-las de outras maneiras. A sociedade como um todo sofreria.
Qual é o papel adequado dos tribunais numa democracia?
Após séculos de experiências democráticas, não há uma resposta fácil para essa questão simples que ainda confunde democracias por todo o planeta
Naturalmente, minorias podem oprimir maiorias também. Uma pequena facção poderia tomar o controle do governo por meio de tráfico de influência e implementar políticas que recompensam a minoria bem conectada em detrimento da maioria. A apatia e a ignorância dos eleitores são solos férteis para minorias tomarem o poder. Tanto o Brasil quanto os Estados Unidos viram isso acontecer com demasiada frequência.
Parafraseando os fundadores dos Estados Unidos da América, os homens não são anjos, por isso que precisam de governo; mas os políticos tampouco são anjos, por isso precisamos de um sistema que controle a si próprio.
Para lidar com o problema das legislaturas que abusem do seu poder, as democracias em geral incluem os tribunais como uma válvula de segurança. A legislatura é livre para redigir as leis que quiser, mas as cortes podem proteger de uma opressão flagrante os desfavorecidos.
Mas dar poder aos tribunais sobre as legislaturas não resolve o problema; apenas transfere, da legislatura para os tribunais, o poder de abusar.
Isto é especialmente perigoso porque os juízes em geral não são eleitos e, portanto, não respondem ao povo. Maus legisladores podem ser substituídos por novos, e leis ruins podem ser substituídas por leis boas. Juízes têm empregos vitalícios (nos EUA) ou até os 75 anos (no Brasil), a despeito de como seja o seu desempenho. Para piorar, é mais fácil capturar um punhado de juízes do que a maioria de uma legislatura.
Deve-se alcançar um equilíbrio: as legislaturas devem ser a fonte primária da lei, com os tribunais intervindo para derrubá-las só em casos extremos, nos quais os primeiros princípios da sociedade são violados. As disputas sobre as políticas públicas não devem ser decididas pelos tribunais, mas só quando tais políticas estiverem num conflito fundamental com os princípios da república.
Vejam um exemplo exitoso de uma Suprema Corte contramajoritária nos EUA. Durante a II Guerra Mundial, um estado passou uma lei exigindo que os alunos das escolas começassem o dia saudando uma bandeira dos EUA e recitando um juramento de fidelidade. Uma pequena seita religiosa objetou à lei, alegando que tal obediência violaria a sua fé. Em West Virginia State Board of Education v. Barnette (1943), a Suprema Corte dos EUA concluiu que a lei estadual era inconstitucional, porque violava a “liberdade de expressão” garantida pela Primeira Emenda à Constituição. Publicada durante a guerra, a opinião declarou que obrigar à ortodoxia política era antiético para os princípios do governo do país.
Em Barnette, a Suprema Corte defendeu um pequeno grupo minoritário de uma maneira que protegeu não só os seus interesses, mas também o interesse que todos os americanos tinham na liberdade de dizer só as coisas nas quais acreditassem. A decisão se baseou em princípios bem entendidos e amplamente aceitos na Constituição dos EUA.
O poder dos tribunais de policiar a legislatura só deveria ser usado nas raras circunstâncias em que direitos entesourados e consagrados pela Constituição são violados de maneira evidente. Se, em vez disso, os tribunais tiverem o poder de impor suas próprias escolhas políticas contra a vontade da legislatura, então a democracia se torna uma ditadura judicial.
Agora vejamos a recente decisão de um único ministro do STF brasileiro de invalidar uma lei de 2013 relativa à mineração aurífera. O estatuto em questão permitia aos compradores de ouro confiar nas afirmações dos vendedores de que o ouro foi extraído em conformidade com a lei. Segundo uma ação entregue ao Tribunal, essa lei criou um caminho que estimula o garimpo ilegal, com consequências negativas para o meio ambiente e para as comunidades indígenas próximas às minas. Com base nisto, um juiz declarou a lei inconstitucional e ordenou que a legislatura escrevesse novas leis. Para a invalidação ser permanente, todo o tribunal teria de confirmar a decisão temporária do ministro único.
As questões de quanta mineração deveria ocorrer, onde deveria ocorrer, quais regras ambientais deveria haver para ela, e qual a papelada necessária para validar as vendas, são todas importantes e difíceis. Mas tais parecem políticas públicas, ou questões puramente legislativas, sobre as quais os eleitores deveriam decidir. Se o Congresso passar uma lei que reduz os custos da mineração porque essa é uma política importante do governo, isso deveria ser respeitado, do mesmo jeito que uma lei que aumentasse os custos da mineração. As eleições deveriam importar.
É perigoso dar a um único jurista não eleito do Supremo Tribunal, ou mesmo ao Tribunal inteiro, o poder de determinar a política de mineração do Brasil. Os tribunais não têm a informação disponível para as legislaturas sobre os fatos locais, as barganhas da política, as opiniões do povo e, afinal, eles não são chamados a responder caso façam más escolhas.
O ministro baseou sua decisão em direitos estabelecidos pela Constituição brasileira, tais como o direito à vida e à saúde, a um sistema ecologicamente equilibrado e aos direitos dos povos indígenas. Embora todas essas considerações sejam importantes para legisladores, são amplas demais para guiar uma revisão não-responsável (unaccountable) de uma lei pelo Tribunal.
Afinal de contas, quase todos os estatutos poderiam ser declarados prejudiciais à vida ou à saúde ou ao meio ambiente e, assim, derrubados por um tribunal. Um tribunal que pendesse para a esquerda poderia invalidar uma lei pró mineração, enquanto que um tribunal que pendesse para a direita poderia invalidar uma lei anti-mineração que, reduzindo a riqueza de mineiros e outros, tivesse impactos negativos sobre a sua saúde.
A democracia não pode funcionar se agentes não eleitos tiverem poderes de veto tão amplos.
A questão de como otimizar da melhor forma a barganha entre crescimento e preservação do meio ambiente ou da cultura indígena é, fundamentalmente, uma questão para o povo do Brasil. Sua voz se expressa por meio da legislatura, sujeita à restrição pelos tribunais só em casos extremos e quando as leis se opõem a princípios fundacionais da sociedade. Tribunais deveriam ser árbitros, não jogadores no jogo da democracia.
Conteúdo editado por: Jônatas Dias Lima