O papa João Paulo II em foto de 1982, durante visita à Espanha.| Foto: EFE
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“A fé e a razão (fides et ratio) constituem como que as duas asas pelas quais o espírito humano se eleva para a contemplação da verdade.” Que católico – e, arrisco dizer, que pessoa interessada na relação entre ciência e fé – não conhece essa memorável frase de São João Paulo II? São as palavras iniciais de Fides et ratio, a penúltima encíclica do papa polonês e que fecha um período de cinco anos em que ele deu ao mundo verdadeiras preciosidades como Veritatis splendor (de 1993) e Evangelium vitae (de 1995). Anteontem, dia 14, Fides et ratio completou seu jubileu de prata, e por isso recomendo aqui a todos que a (re)leiam para descobrir seus tesouros.

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Quando João Paulo II publicou Fides et ratio, ainda faltavam alguns anos para o ateísmo militante se tornar pop, mas o cientificismo – a pretensão de que apenas o conhecimento científico, mensurável e verificável, era o caminho válido para a verdade – já circulava por aí, a ponto de ser explicitamente mencionado pelo papa como um “perigo”; vejam aí:

“Outro perigo a ser considerado é o cientificismo. Esta concepção filosófica recusa-se a admitir, como válidas, formas de conhecimento distintas daquelas que são próprias das ciências positivas, relegando para o âmbito da pura imaginação tanto o conhecimento religioso e teológico, como o saber ético e estético. No passado, a mesma ideia aparecia expressa no positivismo e no neopositivismo, que consideravam destituídas de sentido as afirmações de carácter metafísico. A crítica epistemológica desacreditou esta posição; mas, vemo-las agora renascer sob as novas vestes do cientificismo. Na sua perspectiva, os valores são reduzidos a simples produtos da emotividade, e a noção de ser é posta de lado para dar lugar ao fato puro e simples. A ciência prepara-se, assim, para dominar todos os aspectos da existência humana, através do progresso tecnológico. Os sucessos inegáveis no âmbito da pesquisa científica e da tecnologia contemporânea contribuíram para a difusão da mentalidade cientificista, que parece não conhecer fronteiras, quando vemos como penetrou nas diversas culturas e as mudanças radicais que aí provocou.

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Infelizmente, deve-se constatar que o cientificismo considera tudo o que se refere à questão do sentido da vida como fazendo parte do domínio do irracional ou da fantasia. Ainda mais decepcionante é a perspectiva apresentada por esta corrente de pensamento a respeito dos outros grandes problemas da filosofia que, quando não passam simplesmente ignorados, são analisados com base em analogias superficiais, destituídas de fundamentação racional. Isto leva ao empobrecimento da reflexão humana, subtraindo-lhe aqueles problemas fundamentais que o animal rationale se tem colocado constantemente, desde o início da sua existência sobre a terra. Na mesma linha, ao pôr de lado a crítica que nasce da avaliação ética, a mentalidade cientificista conseguiu fazer com que muitos aceitassem a ideia de que aquilo que se pode realizar tecnicamente, torna-se por isso mesmo também moralmente admissível.” (88)

Quando João Paulo II publicou Fides et ratio, ainda faltavam alguns anos para o ateísmo militante se tornar pop, mas o cientificismo já circulava por aí

Mas seria muito injusto resumir a encíclica a um texto “anticientificista”. Na verdade, trata-se de uma afirmação positiva e jubilosa da existência de muitos caminhos para se alcançar a verdade, que é uma e única, não um amontoado de “verdades” muitas vezes conflitantes entre si. A razão humana é fundamental nessa busca, mas as hard sciences não são a única ferramenta com que nossa razão conta: também vêm em nosso auxílio a filosofia e a fé – sim, a fé, que mesmo sendo “uma ordem de conhecimento diversa da do conhecimento filosófico”, nada tem de irracional. “Creio para entender” e “entendo para crer”, os dois lados da máxima de Santo Agostinho, dão nome a capítulos da encíclica.

Obviamente, embora o fio condutor da encíclica seja a relação entre filosofia e teologia, João Paulo II lembra que a ciência também é um desses caminhos para a verdade, e dedica a ela vários trechos, alguns dos quais reproduzo aqui:

“A própria capacidade de procurar a verdade e fazer perguntas implica já uma primeira resposta. O homem não começaria a procurar uma coisa que ignorasse totalmente ou considerasse absolutamente inatingível. Só a previsão de poder chegar a uma resposta é que consegue induzi-lo a dar o primeiro passo. De fato, assim sucede normalmente na pesquisa científica. Quando o cientista, depois de ter uma intuição, se lança à procura da explicação lógica e empírica dum certo fenômeno, fá-lo porque tem a esperança, desde o início, de encontrar uma resposta, e não se dá por vencido com os insucessos. Nem considera inútil a intuição inicial, só porque não alcançou o seu objetivo; dirá antes, e justamente, que não encontrou ainda a resposta adequada.” (29)

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“Deus que fundamenta e garante o caráter inteligível e racional da ordem natural das coisas, sobre o qual os cientistas se apoiam confiadamente, é o mesmo que Se revela como Pai de nosso Senhor Jesus Cristo.” (34)

“No âmbito da investigação científica, foi-se impondo uma mentalidade positivista, que não apenas se afastou de toda a referência à visão cristã do mundo, mas sobretudo deixou cair qualquer alusão à visão metafísica e moral. Por causa disso, certos cientistas, privados de qualquer referimento ético, correm o risco de não manterem, ao centro do seu interesse, a pessoa e a globalidade da sua vida. Mais, alguns deles, cientes das potencialidades contidas no progresso tecnológico, parecem ceder à lógica do mercado e ainda à tentação dum poder demiúrgico sobre a natureza e o próprio ser humano.” (46)

“Talvez se possa objetar que, na situação atual, o teólogo, mais do que à filosofia, deveria recorrer à ajuda de outras formas do saber humano, concretamente à história e sobretudo às ciências, de que todos admiram os progressos extraordinários recentemente alcançados. Outros, impelidos por uma maior sensibilidade à relação entre fé e culturas, defendem que a teologia deveria dar preferência às sabedorias tradicionais, em vez de uma filosofia de origem grega e eurocêntrica. Outros ainda, partindo duma concepção errada do pluralismo de culturas, negam simplesmente o valor universal do patrimônio filosófico abraçado pela Igreja. Os aspectos sublinhados, já presentes aliás na doutrina conciliar, contêm uma parte de verdade. O referimento às ciências, útil em muitos casos porque permite um conhecimento mais completo do objeto de estudo, não deve, porém, fazer esquecer a necessidade que há da mediação duma reflexão tipicamente filosófica, crítica e aberta ao universal, solicitada também por um fecundo intercâmbio entre as culturas.” (69)

A história do pensamento mostra que certos conceitos básicos mantêm, através da evolução e da variedade das culturas, o seu valor cognoscitivo universal e, consequentemente, a verdade das proposições que os exprimem. Se assim não fosse, a filosofia e as ciências não poderiam comunicar entre si, nem ser recebidas por culturas diferentes daquelas onde foram pensadas e elaboradas. O problema hermenêutico é real, mas tem solução. O valor objetivo de muitos conceitos não exclui, aliás, que o seu significado frequentemente seja imperfeito. A reflexão filosófica poderia ser de grande ajuda neste campo. Possa ela prestar o seu contributo particular no aprofundamento da relação entre linguagem conceptual e verdade, e na proposta de caminhos adequados para uma sua correta compreensão.” (96; parece que o papa estava antecipando a moda dos “universos surgidos do nada” de Hawking e Krauss...)

“Não posso, enfim, deixar de dirigir uma palavra também aos cientistas, que nos proporcionam, com as suas pesquisas, um conhecimento sempre maior do universo inteiro e da variedade extraordinariamente rica dos seus componentes, animados e inanimados, com suas complexas estruturas de átomos e moléculas. O caminho por eles realizado atingiu, especialmente neste século, metas que não cessam de nos maravilhar. Ao exprimir a minha admiração e o meu encorajamento a estes valorosos pioneiros da pesquisa científica, a quem a humanidade muito deve do seu progresso atual, sinto o dever de exortá-los a prosseguir nos seus esforços, permanecendo sempre naquele horizonte sapiencial onde aos resultados científicos e tecnológicos se unem os valores filosóficos e éticos, que são manifestação característica e imprescindível da pessoa humana. O cientista está bem cônscio de que ‘a busca da verdade, mesmo quando se refere a uma realidade limitada do mundo ou do homem, jamais termina; remete sempre para alguma coisa que está acima do objeto imediato dos estudos, para os interrogativos que abrem o acesso ao Mistério’.” (106)

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Repito o convite: leiamos Fides et ratio e aproveitemos toda a sabedoria de São João Paulo II.

Tem mais efeméride papal sobre ciência e fé

A excelente página Science meets faith, do Facebook, lembrou que 7 de setembro foi o aniversário de um discurso do papa Pio XII à União Astronômica Internacional, em 1952, que acabou ficando mais famoso pelo que o papa não disse – no caso, não associou o Big Bang à criação divina. Isso é digno de menção porque menos de um ano antes, em novembro de 1951, o papa tinha feito seu famoso discurso à Pontifícia Academia de Ciências no qual fazia exatamente essa associação, alarmando o padre Georges Lemaître, que resolveu intervir; o discurso de 1952 indica que o padre-cientista belga foi bem sucedido.

A cientista austríaca Berta Moritz, que mantém a página no Facebook, publicou em 2018 um artigo em duas partes sobre as possíveis implicações metafísicas da cosmologia do Big Bang. Na primeira parte, ela mostra como Lemaître distinguia o início da criação do universo: um é física e o outro, metafísica. Mas, ao separá-los, estaria Lemaître aplicando o que Stephen Jay Gould viria a chamar de “Magistérios não interferentes”? Não, explica Moritz na segunda parte do artigo, ressaltando que Lemaître estava mais preocupado com misturas indevidas que com separações forçadas.

Além disso, a página ainda recomendou um texto mais longo sobre o “caso Lemaître-Pio XII” na Enciclopédia Interdisciplinar de Religião e Ciência, escrito pelo padre (e astrônomo) Giuseppe Tanzella-Nitti, professor da Pontifícia Universidade de Santa Cruz, em Roma. Ele conta o episódio com mais detalhes e também o rejeita como possível exemplo de MNI.

Coluna de folga; voltamos em 14 de outubro

Falando em Tanzella-Nitti, ele é um dos participantes (de forma remota) do XI Congresso Latino-Americano de Ciência e Religião, que ocorre no fim de setembro na cidade argentina de Salta. Eu também estarei lá, falando do Tubo de Ensaio e do meu livro de entrevistas, e por isso não teremos a coluna do dia 30.

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