“O homem de antigamente aproximava-se de Deus (ou dos deuses) tal qual um acusado se aproxima do juiz. Para o homem moderno, os papéis são invertidos. Ele é o juiz; Deus está no banco dos réus.” Esta ideia da relação do homem moderno com Deus é uma espécie de “fio condutor” dos 45 textos que compõem a coletânea Deus no banco dos réus, de C.S. Lewis, lançada recentemente pela Thomas Nelson Brasil (meu exemplar é cortesia da editora). É uma publicação póstuma, de 1970, sete anos após a morte de Lewis. Os textos foram reunidos pelo editor Walter Hooper para, segundo ele, fornecer um “antídoto” contra “obras controversas – e, muitas vezes, apóstatas – de religiosos que ‘problematizam’ cada ensaio da fé que são pagos para defender”.
Os textos cobrem um período de 24 anos e incluem de tudo: palestras, cartas, artigos para jornais, artigos para publicações mais especializadas, prefácios para outros livros, entrevistas. São tipos muito diferentes de texto, dirigidos, por vezes, a públicos também muito diferentes. Quem já conhece outras obras apologéticas de Lewis sabe do seu dom em ir direto ao ponto de acordo com o perfil do seu leitor, e com os textos de Deus no banco dos réus não é diferente. Alguns dos exemplos ou “causos” que Lewis usa reaparecem várias outras vezes ao longo do livro (por exemplo, a história do sujeito que diz não crer em um Deus “pessoal” quando na verdade estava tentando se referir a um Deus antropomórfico). Não porque seu repertório seja limitado, obviamente, mas porque eles são realmente bons ou apropriados.
Ao longo do livro, Lewis faz ou uma defesa explícita da fé cristã e da sua razoabilidade, ou uma exposição de um ponto de vista cristão (atenção: um ponto de vista cristão, não necessariamente o ponto de vista cristão) a respeito de certos temas em debate na sociedade. Assim, encontramos textos sobre temas tão variados quanto a função da pena criminal, a transformação do Natal em maratona de compras, a possibilidade de mulheres no clero, a importância de ler livros antigos, a conveniência de existir um partido político “cristão”, ou a existência de um “direito à felicidade”. E é claro que a ciência, e sua relação com a fé, também seria contemplada.
Alguns dos capítulos do livro tratam do tema dos milagres, algo tão caro a Lewis que ele lhe dedicou um livro inteiro (Milagres, de 1947, publicado aqui pela Editora Vida). Aqui, o autor dá apenas algumas “palhinhas”, mostrando a relação dos milagres com as leis da natureza (seriam uma violação? Uma interferência? Ou o que mais?) e discorrendo sobre o que são, afinal, essas leis, se elas têm um caráter descritivo, preditivo ou prescritivo – “Em toda a história do universo, as leis da natureza nunca produziram acontecimento algum”, afirma (p. 99), em uma contestação antecipada às teorias de Stephen Hawking sobre como o universo poderia surgir do nada.
Mas Lewis também aborda outros assuntos da relação entre ciência e fé, como a velha história do “lugar especial” da Terra no universo, e apresenta refutações a alegações cientificistas, como a de que os cristãos vivem obrigados a fazer gambiarras mentais para conciliar um conhecimento científico em plena transformação com dogmas imutáveis (e ultrapassados). Lewis exorta os cristãos a escreverem livros sobre ciência, e afirma que essas obras talvez fariam um bem muito maior que obras de defesa da fé – se a ciência for honesta, claro. Ao mesmo tempo, condena as tentativas de “basear nossa apologética em determinado avanço da ciência” (p. 116). Há um capítulo dedicado a uma questão bioética, a da vivissecção de animais; e outro que trata do sofrimento animal antes do pecado original, uma discussão que costuma ser levantada por quem questiona a Teoria da Evolução, mas esse aspecto não é mencionado pelo autor. Lewis também ataca o naturalismo aplicado às neurociências: se não existe livre arbítrio, se tudo se resume a reações elétricas ou químicas ocorrendo em nosso cérebro, por que deveríamos dar algum valor a essa própria noção reducionista, se também ela não passa de fruto dessas mesmas reações?
O Lewis que aparece em Deus no banco dos réus é alguém que apoia a ciência e a busca pelo conhecimento, mas que desconfia profundamente daquilo que os homens podem fazer com ela. Seja usá-la para a defesa do materialismo ou do ateísmo, extrapolando as implicações de teorias ou descobertas científicas, seja para estabelecer uma tecnocracia – um dos temas, aliás, que permeiam o último volume de sua Trilogia Cósmica. Essa desconfiança não tem nada a ver com alguma característica da ciência, mas com o fato de sermos criaturas decaídas, afetadas pelo pecado. “Poderemos nos tornar ora mais beneficentes, ora mais malignos. Meu palpite é que seguiremos por ambos os caminhos; consertaremos uma coisa e estragaremos outra, eliminaremos sofrimentos antigos e produziremos sofrimentos novos, proteger-nos-emos aqui e nos arriscaremos ali” (p. 383). E aí, leitor: Lewis estava certo?
Pequeno merchan
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