Mais uma do site Church Life Journal: um ensaio bem bacana de Abigail Favale sobre as implicações que a aceitação da Teoria da Evolução tem sobre a noção de que nós, seres humanos, somos feitos “à imagem e semelhança de Deus”. Nós somos uma contradição aparente: a fé nos diz que somos as mais elevadas entre as criaturas, que temos uma dignidade especial, que governamos a Terra; a biologia nos diz que somos uma entre várias outras espécies, e nem mesmo das mais fortes. Como se resolve isso? Não é tão complicado assim, diz a professora da George Fox University. Basta dar a Darwin o que é de Darwin e a Deus o que é de Deus.
A evolução é a melhor explicação para a variedade da vida na Terra e para o surgimento da espécie humana. Disso não temos dúvida. Assim como também é certo que a teoria da evolução não tem absolutamente nada a dizer sobre a imagem divina que espelhamos, nem sobre os fundamentos da dignidade humana. Abigail vai buscar no pensamento de Joseph Ratzinger algumas ideias que nos ajudam a compreender esses pontos. “Se a vida humana tem algum significado, ou dignidade, não é uma questão que a teoria da evolução pode responder”, diz o papa emérito em um livro publicado em 2008, quando ele ainda governava a Igreja. Quatro décadas antes, em 1968, o então professor de Teologia já avisava que “a teoria da evolução não invalida nem confirma a fé, mas a desafia para que compreenda melhor a si mesma e, assim, ajude o homem a compreender melhor a si mesmo”.
A evolução, afirma a professora, nos mostra um mundo muito mais compatível com as noções que temos de criação e de Criador. Ela trata a criação como um processo contínuo, não um estalar de dedos ocorrido no início dos tempos. E insere o ser humano dentro dessa dinâmica criadora, conectado com o resto da criação, em vez de ser um “estranho” colocado ali magicamente. O texto bíblico, aliás, tem uma sutileza pouco percebida no primeiro relato da criação: nos versículos 11 e 24 do capítulo 1, por exemplo, não é Deus quem faz a vegetação e os animais: Ele manda a terra produzi-los. Deus cria um mundo que é capaz de criar também. “Essa é a marca do Logos, a Palavra divina que cria e ordena, por meio da qual todas as coisas foram e são feitas”, diz Abigail, para novamente citar Ratzinger: “a visão cristã do mundo é essa: que o mundo, em seus pormenores, é o resultado de um longo processo de evolução, mas que, no nível mais profundo, ele vem do Logos, traz a racionalidade dentro de si mesmo”.
Falta resolver onde o homem entra nessa. A autora deixa para trás a classificação aristotélica de “animal racional” para que existe algo ainda mais profundo, que é único ao ser humano, e que ela chama de “capacidade de perceber o invisível”, de entender “conceitos transcendentes como justiça, conhecimento, beleza, bondade e Deus” e, portanto, a capacidade de entrar em um relacionamento especial com o Criador, o que a constituição Gaudium et Spes, do Concílio Vaticano II, descreve como o fundamento último da dignidade humana.
A evolução, portanto, só consegue nos explicar o que é o homem do ponto de vista biológico. O Gênesis não está nem aí para isso (e é isso que os criacionistas têm tanta dificuldade de entender), porque o que importa ao autor bíblico é o homem do ponto de vista teológico. E aí voltamos a Ratzinger: “O barro se tornou homem naquele momento em que um ser, pela primeira vez, foi capaz de formar, ainda que de maneira incipiente, a ideia de ‘Deus’. O primeiro ‘Tu’ que, mesmo balbuciado, foi pronunciado por lábios humanos para Deus marca o momento em que o espírito surgiu no mundo. Aqui o Rubicão da antropogênese foi cruzado. Pois não é o uso de armas ou do fogo, nem novos métodos de crueldade ou atividade útil que constituem o homem, mas a sua capacidade de estar em relação imediata com Deus”.
Então, que possamos deixar tranquilamente para trás qualquer medo de que a Teoria da Evolução tire de nós o caráter especial de “imagem e semelhança de Deus”. A biologia não nos rebaixa; ela simplesmente nos diz que estamos intimamente conectados à criação, mas é a fé que nos mostra por que temos a posição mais elevada dentro dessa criação.
Pequeno merchan
Além de editor e blogueiro na Gazeta do Povo, também sou colunista de ciência e fé na revista católica O Mensageiro de Santo Antônio desde 2010. A editora vinculada à revista lançou o livro Bíblia e Natureza: os dois livros de Deus – reflexões sobre ciência e fé, uma compilação que reúne boa parte das colunas escritas por mim e por meus colegas Alexandre Zabot, Daniel Marques e Luan Galani ao longo de seis anos, tratando de temas como evolução, história, bioética, física e astronomia. O livro está disponível na loja on-line do Mensageiro.