Que Charles Darwin, o pai da Teoria da Evolução, morreu declarando-se agnóstico muita gente sabe. Que, em sua juventude, ele chegou a se preparar para ser ordenado padre anglicano é um fato um pouco menos conhecido, mas ainda assim sabido por todos que se interessam pela vida do naturalista britânico. Mas o que exatamente significavam esses dois extremos, e o que aconteceu entre eles? Em 2009, ano do bicentenário de nascimento de Darwin e dos 150 anos de publicação de A origem das espécies, Nick Spencer, então diretor de Pesquisa do think tank Theos, mergulhou na obra completa e na correspondência de Darwin para narrar a sua jornada espiritual em Darwin and God.
Spencer divide a “biografia religiosa” de Darwin em três partes, com dois momentos decisivos. A primeira fase compreende a juventude e a viagem de volta ao mundo a bordo do Beagle; a segunda transcorre entre o retorno à Inglaterra e a morte de sua filha Annie; e a terceira (que inclui a publicação de A origem das espécies) vai até a morte do cientista.
Mesmo quando já se dizia agnóstico, Darwin se esforçou em defender que não há incompatibilidade entre a Teoria da Evolução e a fé em um criador
Qual era, para começar, o tipo de cristianismo que Darwin professava? Ele nasceu em uma família meio anglicana, meio unitarista (grupo de cristãos que rejeitavam a Trindade), na qual o fervor religioso nunca foi moeda corrente. Além disso, Spencer mostra como o cristianismo, para Darwin, não tinha quase nada de revelação ou experiência pessoal; era, basicamente, um sistema intelectual ao qual ele aderia, e que também passou a ver como força civilizatória ao presenciar, durante a viagem no Beagle, os efeitos das missões cristãs sobre nativos do Pacífico, comparando-os com os selvagens que conhecera na Terra do Fogo. Por fim, também era uma crença fortemente influenciada pela teologia natural de William Paley, que via a harmonia e a beleza do mundo como evidências da existência de um criador. Convenhamos, não eram bases lá muito sólidas, especialmente quando o iluminismo e o positivismo já davam as caras, com seus ataques frontais às crenças religiosas. Não surpreende que a perda de fé de Darwin tenha ocorrido sem nenhum tipo de drama de consciência, “não com um estrondo, mas com um suspiro”, como escreveu T.S. Eliot no poema Os homens ocos.
E a carreira religiosa que Darwin se preparava para seguir antes de sua viagem? Não era muito mais que uma “opção profissional” sugerida pelo pai para alguém que não parecia destinado ao sucesso na medicina. Assim como já havia ocorrido com o sacerdócio católico séculos antes, não era preciso ter muita fé para ser padre anglicano no século 19, mas quem conseguisse o posto podia se considerar garantido financeiramente e socialmente para o resto da vida. Era com essa possibilidade que Darwin flertou, mas que descartou por honestidade intelectual, antes de embarcar no Beagle.
Dali em diante, tudo o que aconteceu na vida profissional e pessoal de Darwin foi erodindo aqueles alicerces fracos da fé. As dúvidas vieram de todo lado, e algumas são até que bem básicas: chegou um tempo em que as histórias bíblicas já não pareciam tão verossímeis; o Deus do Antigo Testamento se assemelhava a um tirano vingativo – e o do Novo não era assim tão diferente, se mandava para o fogo eterno quem não cresse (e na família de Darwin havia muitos que se encaixavam nessa categoria); e crer em milagres se tornou algo irracional. Darwin também passou a exigir da fé o mesmo tipo de evidência que ele buscava em suas pesquisas, uma mentalidade bastante “científica” contra a qual sua esposa, Emma, o alertou, sem sucesso.
À medida que Darwin também foi se aprofundando no esforço mental que levaria à Teoria da Evolução, também a base fornecida pela teologia natural paleyiana afundou. Durante a viagem do Beagle, Darwin tinha presenciado terremotos e erupções vulcânicas. E, para que a seleção natural pudesse trabalhar e dar origem à variedade da vida na Terra que temos hoje, foi necessária uma dose extraordinária de destruição e matança. No fim das contas, parece que o mundo não era assim tão harmonioso e ordenado. Por fim, um argumento que conquistou Darwin no fim de sua vida e que o levou ao agnosticismo: se o cérebro do homem evoluiu a partir de estruturas semelhantes dos ancestrais primatas, como podemos ter certeza de que nossos pensamentos, em questões metafísicas, é confiável? Não era simplesmente o caso de dizer que não sabemos de algo; era mais que isso: para Darwin, não era possível saber se temos como saber de algo.
Mas os defensores do ateísmo como consequência lógica da Teoria da Evolução não terão nada a comemorar. Spencer mostra como Darwin, especialmente em sua correspondência, mas também em trechos d’A origem das espécies, se esforça em deixar claro que não há incompatibilidade entre a defesa da evolução e a fé em um criador. Quando publicou sua obra, Darwin já não era cristão, mas ainda era teísta, e viu com bons olhos os comentários de bons cristãos que divulgaram sua teoria e afirmavam que havia mais glória em um Deus que fez as leis da evolução de modo que a criação se desenvolvesse sozinha que em um Deus que houvesse criado as espécies uma a uma. Mesmo no fim da vida, declaradamente agnóstico, Darwin continuou a enxergar compatibilidade entre evolução e fé, e repreendia ateus militantes – os ancestrais de Dawkins, Dennett e Coyne – por sua agressividade.
“Ou o cristianismo está ao pé da cruz, ou não para em pé. E a teologia de Darwin nunca esteve nem perto da cruz”, escreve Spencer
As lutas internas de Darwin com sua religiosidade, no entanto, estiveram longe de ser apenas intelectuais. A fé cristã de Darwin já tinha se perdido graças ao seu encontro com o sofrimento. Não o sofrimento teórico dos milhões de animais eliminados pela seleção natural, nem o da lagarta que permanece viva enquanto alimenta os ovos da vespinha depositados em seu corpo: foi um encontro pessoal e doloroso, que começou em 1842, com a morte da terceira filha, com apenas três semanas de vida. Nos anos seguintes, sogro, sogra e pai faleceram. E, por fim, em 1851, a filha preferida, Annie, após uma longa agonia que Darwin acompanhou e narrou em cartas enviadas para sua esposa. “Os últimos resquícios de sua crença no Deus bom, pessoal, justo e amoroso do cristianismo morreram na Páscoa de 1851, com sua amada filha”, escreve Spencer.
Darwin não estava equipado espiritualmente para a perda. Como afirma Spencer em uma passagem magistral ao fim do livro, “assim que o cristianismo se afastou do pé da cruz e perdeu de vista o Deus crucificado, ficou indefeso contra as acusações de injustiça e sofrimento. Não há justificação filosófica ou argumentos sobre a imortalidade da alma que sejam suficientes. A dor, o senso de injustiça e de perda são avassaladores. Ou o cristianismo está ao pé da cruz, ou não para em pé. E a teologia de Darwin nunca esteve nem perto da cruz, nem mesmo nos seus anos de ortodoxia (...) Claro que uma perda como a que ele experimentou na Páscoa de 1851 poderia esmagar qualquer fé religiosa, mas aquele cristianismo quase que sem Cristo, de uma ordem natural, feliz e segura, não ofereceu resistência alguma” (p. 119).
Darwin and God nos mostra que, apesar de ser um gênio da ciência, cujas ideias revolucionárias abalaram sua fé, Charles Darwin também enfrentou as mesmas angústias pelas quais todos nós passamos – quem não se entristece ao pensar em amigos e familiares queridos que podem perder sua alma? Quem não experimentou a perda e o sofrimento? Quantos acabam hesitando diante da possibilidade do extraordinário, do sobrenatural? Lendo o livro, podemos finalmente entender como e por que ele sucumbiu.
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