Daqui a alguns dias o Bad Religion toca em Curitiba. Assim como a Glória Pires, não sou capaz de opinar sobre o som da banda, porque nunca me interessei em ouvir nada deles. Mas me interessa o que seu vocalista e compositor, Greg Graffin, tem a dizer. Ele é mestre em Geologia pela UCLA e PhD em Zoologia pela Universidade Cornell, fato que, suponho eu, boa parte dos fãs do grupo conheça. Um desses fãs, Preston Jones, professor de História numa faculdade confessional cristã no Arkansas, sabia disso e, um certo dia em 2003, enviou um e-mail a Graffin. A troca de mensagens que se seguiu se transformou em Is belief in God good, bad or irrelevant? A professor and punk rocker discuss science, religion, naturalism & Christianity, lançado em 2006. No meio de observações triviais sobre as turnês da banda e o dia a dia dos dois, há conversas profundas sobre vários temas, incluindo a relação entre ciência e fé.
Como se trata de uma troca de mensagens, às vezes bem longas, alguns temas acabam se perdendo na conversa. Em sua primeira mensagem a Jones, Graffin escreve que “os biólogos evolucionistas rebaixam significativamente a religião para fazê-la compatível com a ciência. Eles acham que estão fazendo um favor aos religiosos ao aderir a uma forma de compatibilismo – ou seja, defender que a religião e a biologia evolucionista são compatíveis. Para muitos biólogos evolucionistas, não há conflito entre evolução e religião, com uma condição importante: que a religião seja essencialmente ateísta! Sei que isso parece loucura, mas é o resultado da minha dissertação”. Na mensagem seguinte, Jones demonstra muita curiosidade a respeito desse argumento, mas ele não reaparece na discussão, mesmo depois que Jones consegue ler a tese de doutorado de Graffin (ele comenta outros aspectos da tese, mas não o tópico da “religião aguada”). Em 2010, o músico lançou Evolution and religion: questioning the beliefts of the world’s eminent evolutionists, então suponho que ele trate do assunto nessa obra.
A relação entre evolução e religião volta às mensagens apenas quando Graffin afirma que cada vez mais crianças estão sendo expostas a visões de mundo naturalistas, mesmo em famílias religiosas. “O resultado é que ciência e religião acabam implantadas no cérebro das crianças, criando uma visão confusa sobre ambas”, fazendo o americano médio misturar pressupostos tanto da ciência quanto da fé para moldar sua visão de mundo. “Pense nas pessoas que se dizem cristãs e acreditam na Bíblia, mas ao mesmo tempo reconhecem o fato científico de que o homem descende de ancestrais primatas. O cidadão americano médio é assim. Vê o que eu quero dizer? Bagunça!”, escreve o músico. Uma bagunça que convém à teologia, porque a clareza sobre os fatos conduziria irremediavelmente ao naturalismo, continua Graffin.
“Naturalismo”, aliás, é um conceito importante em todo o livro. Graffin é ateu, mas prefere se definir como “naturalista”. O naturalismo é “uma religião jovem e nova”, na definição do músico (não sou eu que estou dizendo, é o próprio Graffin que chama o naturalismo de “uma religião”!). Antes de fazer essa caracterização, ele explica: “O naturalismo que eu e muitos cientistas que entrevistei e com os quais aprendi defendemos é simplesmente a crença de que a verdade vem da pesquisa empírica do universo”. Essa observação inicia um debate sobre a natureza do conhecimento, pois Jones pergunta: quem acredita que toda a verdade vem da investigação empírica? E Graffin responde: ele acredita, oras! E continua: “As únicas pessoas que não creem que a verdade está lá [na pesquisa empírica] são os filósofos e teólogos que por séculos insistiram que a soma de toda a verdade está em algum lugar ‘inefável’ ou além. Isso é um mito pernicioso que só recentemente começou a ser denunciado como prejudicial”. A noção de que “a verdade é algo maior que nossas pesquisas naturalistas” é mero mito, diz Graffin.
Estamos diante do bom e velho cientificismo. Uma pena que Jones não tenha retrucado imediatamente dizendo que a afirmação segundo a qual o único conhecimento válido é o adquirido experimentalmente é uma afirmação profundamente filosófica e, obviamente, não tem como ser comprovada empiricamente. Apenas no último e-mail do livro Jones volta ao tema. Ele cita James Crow (o geneticista ou o músico? Não consegui descobrir), que afirma não ser capaz de analisar cientificamente a música: “há áreas que, pelo menos por enquanto, estão além do alcance da ciência. E mesmo assim eu não quero dizer que elas não sejam reais”. Jones pega esse comentário e continua: “Uma resposta poderia ser a de que mais cedo ou mais tarde a ciência vai dar um sentido a essas coisas, mas essa é uma afirmação de fé, então não esclarece muita coisa” (destaque meu). Essa resposta final vem, inclusive, depois de uma longa discussão sobre haver algum significado ou propósito último no mundo e na existência, um debate altamente filosófico, nada comprovável empiricamente, mas que Graffin não vê problema em travar.
Uma observação interessante feita por Jones é a de que naturalistas como Graffin têm fé e esperança (duas das três virtudes teologais, acrescento eu): fé na noção de que a maioria das pessoas está errada sobre algumas das coisas mais básicas da vida, fé na ausência de propósitos últimos para a existência, esperança de que mais cedo ou mais tarde a ciência resolverá, se não todos, a maior parte das grandes questões da humanidade. E arremata dizendo que os naturalistas são mais “zelosos” da sua fé que os cristãos, pois estes não veem problema em assimilar as descobertas daqueles (mais adiante Jones falará da importância de uma “fé razoável” em oposição a uma fé cega), mas os naturalistas repelem veementemente qualquer insinuação da possibilidade de uma divindade.
Isso não significa que eu considere que Jones sempre tem razão. Ele parece, por exemplo, atribuir a “desordem” da natureza (toda a destruição, a morte, os parasitas, os predadores etc.) ao pecado original, uma noção que discutimos no blog há muitíssimo tempo. Mas, convenhamos, Graffin comete erros bem mais primários, como o de misturar onipotência com onisciência para criar um espantalho que consiste num paradoxo a respeito do livre arbítrio. Quem está se beneficiando da bagunça agora?
Algo que atrai no livro é que, logo de cara, o leitor percebe que está diante de uma discussão adulta. Um acha que o outro está errado, e ninguém tem medo de admitir isso. “Muito mais interessante que um relativismo politicamente correto”, escreve Jones. Não tem mimimi, não tem “microagressão”, é uma conversa civilizada, mas firme. Outro fato que fica óbvio depois da leitura de mais ou menos um terço das mensagens é que, no fim, ninguém vai mudar de opinião – por esse ponto de vista, não há um “vencedor” (e até por isso Jones não gosta que chamem essa troca de e-mails de um “debate”). O que não retira nenhum valor desse diálogo. Mais que saber quem vai convencer quem, o importante é conhecer como pensam duas pessoas com convicções tão opostas, e que um entenda melhor o que o outro pensa, sem espantalhos ou preconceitos.
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