Bem nos começos desse blog eu comentei o artigo do L’Osservatore Romano sobre o atual entendimento de morte encefálica. Há alguns dias minha amiga Lenise Garcia, que vocês também conhecem do blog, me enviou um PDF muito interessante, que pode ser baixado do site do Vaticano: Why the Concept of Brain Death is Valid as a Definition of Death. Na capa se vê que a publicação é deste ano, mas o texto pertence ao volume Os Sinais da Morte, fruto de um congresso do mesmo nome promovido em 2006 pela Pontifícia Academia de Ciências.
O texto é assinado por 28 pessoas, das quais as únicas que reconheci logo de cara são os cardeais Cottier, Martini e o falecido López Trujillo, além de monsenhor Elio Sgreccia, à época presidente da Pontifícia Academia para a Vida. Além de religiosos, há médicos, especialmente neurologistas.
A leitura é bem acessível e não é muito longa; os autores fazem um retrospecto de como se chegou ao conceito de morte encefálica, e ressaltam que ela “não é um sinônimo de morte, não implica morte, ou é igual à morte, mas é morte”. Lembram também que a morte encefálica é diferente de coma, estado vegetativo ou outros estados de inconsciência. “Se os critérios para a morte encefálica não se verificam, a barreira entre vida e morte não foi cruzada, não importando quão grave e irreversível possa ser a lesão cerebral”, avisam os autores.
O texto também avisa que, com o advento do conceito de morte encefálica, não se pode dizer que existe mais de um “tipo” de morte. Com a morte encefálica, encerra-se a vida do indivíduo, ainda que se mantenham em funcionamento outros órgãos. Uma coisa é o processo que leva à morte encefálica; outra coisa é o processo de decomposição que começa com a morte. O texto lembra que os antigos sabiam diferenciar uma coisa de outra, ao perceber que cabelos e unhas continuavam crescendo mesmo após a morte. Assim como seria errado concluir que, se cabelos e unhas continuam crescendo, a pessoa ainda está viva, seria errado esperar a morte de todas as células do indivíduo para considerá-lo realmente morto.
Várias páginas do PDF se dedicam a rebater algumas objeções feitas ao conceito de morte encefálica. Para mim em específico, é bem convincente, por exemplo, o que se diz sobre os casos de grávidas clinicamente mortas cujas gestações são levadas até o fim (eu mencionei esses casos no meu post de setembro). Mas a resposta à questão do teste de apnéia (que eu também abordei mês passado) me pareceu incompleta. “Os argumentos de que o teste de apnéia trazem um risco ao paciente são amplamente inválidos quando o teste é realizado corretamente”. Não duvido: mas o que é “realizar corretamente” o teste de apnéia? A partir de que momento ele pode ser realizado com a certeza de que ele não ajudará a matar o paciente?
A segunda parte do documento, para quem se preocupa com as implicações filosóficas e teológicas da discussão sobre a morte, é ainda mais interessante: consiste na resposta ao filósofo alemão Robert Spaemann (cujo trabalho é admirado por Bento XVI) e ao neurologista norte-americano Alan Shewmon.
Shewmon diz que não se pode considerar o encéfalo como o órgão que integra as diversas partes do corpo. Ele afirma que pacientes com morte encefálica declarada mantinham funções consideradas de responsabilidade do cérebro. Para Shewmon, a morte é um processo mais amplo, que afeta vários órgãos, e se inicia quando o dano a vários sistemas do organismo chega a um ponto em que não há mais retorno.
O contra-argumento científico feito pelos autores do texto da Pontifícia Academia de Ciências é o seguinte: é verdade que há órgãos que podem ser mantidos em funcionamento independentemente do cérebro, mas a integração entre eles vem do hipotálamo e do tronco encefálico. Funcionamento isolado é uma coisa, funcionamento integrado é outra.
Já o argumento de Spaemann é de ordem filosófica: os neurologistas, incapazes de justificar uma eventual integração dos órgãos sem o encéfalo, adotariam uma visão que associa o cérebro à mente, ou à personalidade, para poder embasar a definição de morte encefálica como a morte do indivíduo. E é aqui que os autores do texto publicado pelo Vaticano invocam um trio de peso em seu favor.
Spaemann, como católico, deve aceitar que é a alma que “informa” o corpo, ou seja, faz daquele corpo um ser humano. Há uma unidade da ação cognitiva com a sensitiva e a vegetativa, como descrita por Aristóteles com uma metáfora geométrica. Para haver essa unidade orgânica, pressupõe-se que haja um órgão que faça essa coordenação: se cada atividade ocorresse de forma independente, o conceito de “organismo” perderia força. “O encéfalo é o centro do sistema nervoso, mas não pode funcionar sem as partes essenciais de sua conectividade no organismo, assim como o organismo não pode funcionar sem seu centro. Não somos cérebros num recipiente, mas também não somos corpos sem cérebro”, afirmam os autores do texto da Pontifícia Academia de Ciências.
E, em defesa do cérebro, vêm dois dos maiores teólogos da Igreja. O primeiro a ser citado é Santo Tomás de Aquino, para quem a alma informa o corpo de forma direta, mas, para agir como “motor” do corpo, usa um intermediário. Os autores do texto concluem: “Assim, quando as células do encéfalo morrem, o indivíduo morre; não porque o cérebro é a mesma coisa que a mente ou a personalidade, mas porque esse intermediário da alma, em suas funções operativa e dinâmica (como motor) dentro do corpo, foi removido”.
E, para arrematar, os autores lembram que o argumento tomista veio de Santo Agostinho. Para eles, o bispo de Hipona foi uma espécie de “precursor” do conceito de morte encefálica. Em Comentário Literal ao Gênesis, ele escreveu: “Quando as funções do cérebro que estão, por assim dizer, a serviço da alma cessam completamente devido a algum defeito ou perturbação – já que os mensageiros das sensações e agentes do movimento não podem agir –, é como se a alma não estivesse mais presente, não estivesse no corpo, e o tivesse deixado.” Mais claro impossível.
Eu, particularmente, não tenho questionamento nenhum sobre o conceito de morte encefálica, especialmente do ponto de vista filosófico ou religioso; não tenho conhecimento de Neurologia suficiente para dar a mesma certeza do ponto de vista médico, mas os argumentos que pesquisei até agora também são convicentes, e até onde eu sei nem o doutor Cícero Galli Coimbra (cujos textos li para meu primeiro post sobre o assunto, mês passado) questiona o conceito em si. O problema, que aí sim merece atenção, é a aplicação do conceito em circunstâncias concretas, a realização do teste de apnéia em pessoas que podem não estar realmente mortas.
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Uma outra visão sobre o assunto, favorável aos questionamentos sobre o conceito de morte cerebral, pode ser lida aqui. Para os católicos, no entanto, uma ressalva: o site é mantido por um mosteiro beneditino cismático, que não está em comunhão com o Papa e rejeita o Concílio Vaticano II.
O jornalista Maurício Tuffani, do blog Laudas Críticas, também voltou a escrever sobre a polêmica da morte encefálica. Leiam o seu comentário sobre uma reportagem do The Economist, e especialmente o texto do neurologista Célio Levyman em resposta às críticas lançadas.
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