Estamos na Epifania do Senhor (ou “dia do Santo Reis”, como cantaria Tim Maia). Dia de marcar as iniciais dos reis magos com giz nas portas das casas, de entregar os presentes às crianças em alguns países, de manifestações de devoção e piedade popular muito importantes em várias regiões. E dia, claro, em que muita gente volta a discutir o que teria sido a estrela que, segundo São Mateus, os magos do Oriente viram e que os levou a fazer a viagem até a Judeia.
Ontem, no blog da Fundação do Observatório Vaticano, Christopher Graney, professor de Física e Astronomia, apresentou ao leitor o trabalho de Michael Molnar, da Universidade Rutgers. Em 1999, ele escreveu um livro defendendo que a estrela de Belém era o planeta Júpiter, eclipsado pela Lua, na constelação de Áries, com o sol a leste. Essa combinação de astros e posições no céu, ocorrida em abril do ano 6 antes de Cristo, seria lida por sábios antigos como o indicativo de um nascimento real na região da Judeia. O mais curioso disso tudo é que seria um fenômeno invisível, com esse eclipse ocorrendo à luz do dia. Isso, no entanto, não seria um impedimento para estudiosos dos astros, que não precisavam ver para saber que toda essa movimentação celeste estava ocorrendo. Tendo iniciado a viagem em abril, os magos chegariam a Belém em dezembro daquele mesmo ano.
Graney não endossa nem descarta a hipótese de Molnar, apenas diz que ela é “interessante e plausível”, e que se encaixa com algumas características do relato bíblico. Uma delas é o fato de Herodes e toda a sua corte, quando questionados pelos magos, terem ficado perplexos. Isso seria indicativo de um fenômeno celeste imperceptível aos leigos, mas não aos estudiosos, ou “astro-nerds”, como escrevera Graney em dezembro de 2016, em um post republicado duas semanas atrás. Ou seja, a estrela de Belém não seria nem um pouco parecida com o clarão da iconografia clássica, algo que teria sido percebido por toda a sociedade. Um outro ponto de convergência é o fato de o movimento dos planetas no céu ser mais “errático” que o das estrelas; isso explicaria o movimento da “estrela de Belém” descrito na Bíblia, já que ela anda e para.
Claro que esta é apenas uma de várias outras hipóteses a respeito da “estrela de Belém”. Na véspera de Natal de 2016, o programa de rádio britânico Unbelievable? trouxe três convidados, cada um com uma perspectiva diferente. Colin Nicholl, cristão e biblista, ex-professor da Universidade de Cambridge, escreveu um livro argumentando que se tratava de um cometa. Aaron Adair, ateu, também publicou uma obra defendendo que a estrela não passa de uma história piedosa inserida pelo evangelista e nunca existiu de verdade. Por fim, o astrônomo Mark Kidger, da Agência Espacial Europeia, também tem um livro em que expõe suas pesquisas sobre o tema, eliminando várias possibilidades e analisando as que sobraram, pendendo para uma combinação de eventos que inclui uma supernova e uma conjunção planetária.
Mas o que pensar de todas essas tentativas de encontrar um fenômeno astronômico “natural” que se encaixe na narrativa da estrela e dos magos e ofereça uma explicação “científica” para o relato bíblico? O astrofísico Alexandre Zabot, da UFSC, não vê esse esforço com bons olhos. “Em geral desconfio de qualquer tentativa de explicação do sobrenatural a partir do natural. Isso vale para as pragas do Egito, a estrela de Belém, o milagre do Sol em Fátima etc.”, disse. Zabot, que é católico, ressalta que em várias das hipóteses apresentadas para a estrela “a quantidade de coincidências naturais é tão grande que a explicação natural parece mais miraculosa que a sobrenatural”, o que me lembrou da hipótese de Stanley Jaki para o milagre do Sol. “Em geral a explicação é forçada e pouco científica no quesito da Navalha de Occam”, acrescenta o astrofísico. Essa caça à estrela de Belém é uma maneira equivocada e pouco proveitosa de buscar uma aproximação entre ciência e fé; não é como os esforços, por exemplo, para conciliar a teoria da Evolução com a doutrina do monogenismo, ou para explicar as novas descobertas da neurociência à luz das noções de consciência e livre arbítrio, empreitadas que o astrofísico considera saudáveis.
O que me incomoda não é tanto a apresentação de diferentes hipóteses para a estrela de Belém, mas a mentalidade que pode estar subjacente a essa busca. O ateísmo militante ou mesmo certas correntes aguadas de cristianismo, por exemplo, sempre estarão atrás de explicações naturais com o objetivo de desmoralizar tudo o que há de sobrenatural na história de Cristo. Certamente não é o caso de muitos dos citados neste texto e que têm se dedicado ao estudo dessa questão. Mas mesmo gente de fé corre o risco de embarcar em uma neura de que tem de haver ou é melhor que haja uma explicação natural para esse tipo de coisa, como se a outra possibilidade, uma intervenção divina extraordinária, seria uma explicação “inferior”, ou menos maravilhosa. Sabemos muito bem que Deus também age por meio dos fenômenos ordinários da natureza, e pode até ser que a estrela de Belém realmente se encaixe nesse critério. O que não podemos é excluir de antemão a hipótese de um milagre “clássico”, por assim dizer, ou considerá-la algo frustrante por ser indemonstrável.
Pequeno merchan
Além de editor e blogueiro na Gazeta do Povo, também sou colunista de ciência e fé na revista católica O Mensageiro de Santo Antônio desde 2010. A editora vinculada à revista lançou o livro Bíblia e Natureza: os dois livros de Deus – reflexões sobre ciência e fé, uma compilação que reúne boa parte das colunas escritas por mim e por meus colegas Alexandre Zabot, Daniel Marques e Luan Galani ao longo de seis anos, tratando de temas como evolução, história, bioética, física e astronomia. O livro está disponível na loja on-line do Mensageiro.