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Tubo de Ensaio

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Ciência, religião e as pontes que se pode construir entre elas

Livro

O cristão diante da tecnologia onipresente

Revolução tecnológica
As refeições são um dos momentos de fortalecimento de laços que a revolução tecnológica bagunçou. (Foto: Marcio Antonio Campos com Midjourney)

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Temos visto muita gente escrevendo livros a respeito do efeito da tecnologia em nossas vidas, em um arco que vai do deslumbre ao alerta. Aos poucos, os cristãos também vão entrando no debate, e um dos autores brasileiros que vale a pena conhecer é Luiz Adriano Borges, professor de História da Tecnologia e de Filosofia da Tecnologia no câmpus Toledo da Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR). Seu A revolução tecnológica é um livro que curti muito, e o subtítulo dá uma ideia do motivo: “o desafio da relação ética entre a cultura pop e a teologia cristã”.

O livro de Borges é dividido quase que meio a meio entre o diagnóstico e o receituário. A primeira parte talvez soe mais familiar a quem já se debruçou com mais atenção sobre o tema, independentemente de filiação religiosa. “Sociedade do cansaço”, “geração ansiosa”, “geração superficial” e outras expressões que já se tornaram nomes de (bons) livros estão lá como alguns dos resultados da nossa superexposição a telas, mas esses estão longe de ser os únicos desafios trazidos pela onipresença da tecnologia. Linchamentos virtuais (que em alguns casos já levaram a linchamentos reais), superficialização das amizades, a instagramização da própria vida por meio do exibicionismo, a difusão das fake news e da pornografia, a crença na tecnologia como a solução de todos os nossos problemas (inclusive aqueles criados pela tecnologia) e como a chave para um futuro sem doenças ou até mesmo sem a morte, o desprezo pelo nosso corpo, controle social do comportamento e vigilância estatal que premia os “bons”: a lista de efeitos negativos dessa nova “religião” em que celulares e outros gadgets deixaram de ser meios para se transformarem em fins é enorme.

Os cristãos precisam usar as tecnologias com discernimento e parcimônia

A grande sacada de Borges nesta primeira parte de A revolução tecnológica é fazer todos esses alertas recorrendo a um conjunto enorme de referências culturais, especialmente da cultura pop. O leitor vai encontrar citações do ótimo A abolição do homem, de C.S. Lewis, e do legendarium de J.R.R. Tolkien, mas também será remetido a jogos de videogame como Horizon Zero Dawn; a séries como Game of Thrones e (especialmente) Black Mirror; e a longas de animação da Disney e da Pixar como Operação Big Hero. Não vi nem joguei quase nada daquilo que Borges vai citando – com exceção de Lewis, Tolkien e dos desenhos animados –, mas isso não é um impeditivo para o leitor, porque o autor resume os enredos sem dar muitos spoilers (na maioria das vezes) e com isso já consegue fazer a ligação pretendida com a forma como somos afetados pela tecnologia. E assim Borges também consegue nos mostrar como alguns produtos culturais da atualidade pendem mais para a exaltação da tecnologia ou para o alerta em relação aos efeitos nocivos, aguçando nosso olhar crítico de espectador ou jogador.

Menos tempo de tela, mais tempo entre amigos de carne e osso

Mas e então? O que o cristão faz com tudo isso? Esse é o cerne da segunda parte do livro, mas ao longo da primeira metade já vamos encontrando algumas dicas. Borges diz que não podemos ser neoluditas, como se fosse preciso destruir nossos smartphones e videogames – afinal, o mandato divino de cuidar da terra também implica desenvolver tecnologia (num sentido mais amplo que o de “mundo digital”). Mas também não podemos ser ingênuos a ponto de achar que a tecnologia é neutra, que basta “usá-la bem” e tudo estará resolvido, porque isso não é verdade: a tecnologia tem a finalidade que seus criadores lhe dão – a das mídias sociais, por exemplo, é nos manter ali rolando o feed pela maior quantidade possível de tempo até chegarmos ao ponto de estarmos mediando todas as nossas relações pelos nossos gadgets.

Estando conscientes disso, os cristãos precisam usar as tecnologias com discernimento e parcimônia. É por isso que a segunda parte de A revolução tecnológica se chama “desconectar”, e o primeiro capítulo dessa segunda parte trata da aplicação da “ética das virtudes” ao mundo tecnológico. Mas isso é só o começo. O que Borges propõe – de novo, trazendo várias referências da cultura pop, com destaque para as animações como Soul, Dois irmãos e Luca – é a recuperação de uma característica tão básica quando esquecida do cristianismo, que é a religião do Verbo feito... carne. Não somos gnósticos ou cátaros que desprezam o corpo. Mídias sociais são ótimas para nos ajudar a fazer amigos naquele sentido “lewisiano”, de pessoas que amam e desejam as mesmas coisas – e jamais passaria pela minha cabeça negar o valor disso, eu que conheci minha esposa em uma comunidade de católicos no finado Orkut. O home office faz maravilhas pelas famílias ao elevar o tempo de convivência entre pais e filhos, ainda que de uma forma imperfeita. Mas só isso não basta. Mil mensagens não substituem um encontro real com um amigo ou uma refeição em família.

Cozinhar, rezar, passear, jogar... e amar

Revolução tecnológicaJogos de tabuleiro são muito mais que mera distração: são ocasião de compartilhar bons momentos com família e amigos. (Foto: Marcio Antonio Campos com Midjourney)

Não basta apenas reduzir o tempo de tela, das crianças e nosso; precisamos “re-encarnar” nossas vidas e recuperar as atividades que nos conectam uns aos outros, à natureza, às nossas cidades, às nossas comunidades de fé. Caminhar, preparar uma refeição em família ou com amigos, levar as crianças para brincar num parque, ir à igreja, enfim, aproveitar todas as oportunidades possíveis para estar juntos fisicamente, mentalmente e espiritualmente – juntos mesmo, e não como quem está apenas no mesmo lugar, cada um afundado em sua própria telinha. É assim que os cristãos vão recuperar a beleza do mundo e dos relacionamentos, restaurando o senso de comunidade que o mundo virtual nos tirou.

A chave de ouro é o elogio que Borges faz dos jogos de tabuleiro – dessa nova geração de jogos, que prezam mais o raciocínio que a sorte e em que todos jogam até o fim (ao contrário dos antigos War e Banco Imobiliário, por exemplo). Eu já conhecia o autor antes de ler A revolução tecnológica, e sabia que, além de leitor voraz, ele também é fã desses jogos, que aqui em casa também apreciamos bastante, embora não joguemos com frequência porque alguns são complexos demais para as crianças (mas logo isso muda). Borges mostra como esses jogos são uma escolinha de virtudes, e até dá dicas de jogos que cumprem melhor esses objetivos – quem já jogou Tammany Hall sabe por que ele não está na lista...

Desconectar e desacelerar é fácil? Deus sabe que não é. Mas A revolução tecnológica nos mostra que é necessário. Como afirma James A.K. Smith, bastante citado por Borges, nós somos o que nós amamos. Se amamos a própria tecnologia e o que ela proporciona, dos likes ao “desligamento” do mundo, estaremos lascados. Afinal, como mostra C.S. Lewis em O grande divórcio, um dos meus livros favoritos do irlandês e também mencionado por Borges, são os afetos desordenados, mais que as grandes atrocidades, que nos conduzem à infelicidade eterna. Mas, se amamos a Deus e, por meio dEle, as pessoas ao nosso redor, buscaremos “subverter” aquelas finalidades da tecnologia para colocá-la no seu devido lugar, como um meio (e não o meio) para a glória de Deus.

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