As tentativas de encontrar explicações puramente naturais para um “universo surgido do nada” ganharam um impulso com mais um livro oferecendo uma teoria para o início do universo, dessa vez escrito por Lawrence Krauss. Mas, a julgar pelo que se argumenta em A Universe from Nothing: Why There Is Something Rather than Nothing, o problema é o mesmo já observado em outras tentativas (incluindo a de Stephen Hawking): uma ignorância, voluntária ou não, do que venha a ser esse “nada” do qual nós dizemos que Ele tirou o universo.
Neste artigo escrito para o Guardian, Krauss afirma que “a duradoura questão filosófica e teológica ‘por que existe algo e não o nada?’, como muitas outras questões antes dela, está se tornando cada vez mais uma questão científica, porque nossas noções de ‘algo’ e ‘nada’ mudaram completamente como resultado de nosso novo conhecimento”. De fato, só mudando o conceito de “nada” é que se pode conseguir tirar algo dele de forma puramente natural. Vejamos:
Escrevendo sobre o livro de Krauss no USA Today, Dan Vergano explica que certas equações produzem “partículas virtuais” que surgem e desaparecem o tempo todo no nível subatômico. Krauss alega que um número suficiente dessas partículas pode detonar um Big Bang. Vejamos o que ele diz em entrevista ao portal Terra: “Mesmo em um espaço vazio, há partículas saindo do nada, constantemente. (…) A mecânica quântica nos diz que o nada vai, eventualmente, produzir algo.” Ainda que Krauss esteja certo, isso ainda não é “criação a partir do nada”. É possível (dis)torcer o conceito, mas não é possível transformar o nada naquilo que ele não é. “O nada é instável”, diz Krauss ao Terra. Errado: o nada é a coisa mais estável que… bom, eu ia dizer “que existe”, mas o verbo não é apropriado, se é que me entendem (talvez nem o termo “coisa” seja apropriado).
Martin Rees já disse que Stephen Hawking não era lá essas coisas em termos filosóficos e teológicos, e pelo jeito podemos estender a afirmação a mais gente, por suas tentativas de falsificar o nada ao colocar algo nele. O nada não é simplesmente ausência de matéria, ausência de partículas ou o que for: é o não ser. Se algo permite o surgimento das “partículas virtuais” de Krauss, então não estamos na negação completa da existência: a equação (ou a lei) que faz com que surjam as tais partículas tem uma existência, e isso basta para que não possamos dizer que estamos diante do nada.
Sem dúvida, o nada é algo difícil de imaginar, mas será assim tão difícil de entender? Pelo jeito, com o tanto de gente que pretende tirar universos de um “nada que não tem partículas, mas já tem leis”, a Filosofia faz muita falta.
É aí que entra William Carroll, da Universidade de Oxford. Neste artigo para a Prospect, ele diz considerar errado associar “criação” a “início temporal”, e diz que por isso tanto os que usam modelos cosmológicos para rejeitar Deus (como Hawking e Krauss) quanto os que o usam para confirmar Deus (como William Lane Craig e Robert Spitzer) estão errando o alvo. Essa argumentação já tinha sido desenvolvida por Carroll em sua palestra “Cosmologia e criação: quando um começo não é o começo”, no VI Congresso Latino-Americano de Ciência e Religião, em outubro do ano passado, confiram aí:
Ele diferencia o que a Cosmologia pode dizer e o que se entende por criação. Primeiro, ele diz que a relação entre causa e efeito não é necessariamente temporal, ao contrário do raciocínio de Stephen Hawking para negar um criador só porque antes do Big Bang o tempo não existia. Carroll diz que a relação causa-efeito é de dependência. Assim, Deus como causa é diferente das demais causas observáveis no universo.
Na palestra, Carroll diz que a “criação” entendida pela Cosmologia (no sentido de atividade criadora) é diferente daquilo que a Filosofia e a Teologia entendem por “criação”. Para começar, qualquer modelo cosmológico que se proponha a explicar a “criação” sempre parte de algo já existente no universo (leis, equações, flutuações quânticas, o que for). “A distância entre frações de segundo após o Big Bang e o que se entende por criação é infinita. Não chegamos mais perto da criação só por chegarmos mais perto do Big Bang”, afirma Carroll (25:20 no vídeo), para logo depois explicar o que já vínhamos dizendo: o “nada” do qual o universo surge nos modelos de Hawking e Krauss não é o “nada” que importa quando falamos de uma atividade criadora; no máximo, é um “nada parecido com o universo que temos hoje”.
A criação, entendida metafisicamente e teologicamente, depende de Deus como causa. A ciência, diz Carroll, lida com processos de transformação. “Fazer com que algo exista não é produzir uma mudança em algo, não é trabalhar com ou em um material já existente. Quando dizemos que a ação criativa de Deus é feita ‘a partir do nada’, o que dizemos é que Deus não usou nada para criar tudo o que existe; não significa que houve uma mudança do ‘nada’ para o ‘algo'”, continua. Por isso ele diz que usar explicações naturais para negar Deus é incorreto. Mas o fato de Deus ser a causa última não significa que não haja outras causas para o universo criado. Os modelos de Hawking e Krauss podem até estar certos; erradas estão as conclusões metafísicas que eles tiram desses modelos, como Carroll vai explicar.
O professor de Oxford mostra, a seguir, que essa diferença fundamental entre “criação” como vista pela ciência (a partir de realidades – sejam elas leis, forças ou matéria – já existentes) e a “criação” entendida por filósofos e teólogos (a partir de nenhuma realidade pré-existente) vem de santo Tomás de Aquino. A criação se refere à origem do universo, uma relação de causa e efeito, não ao seu início temporal. Nesse sentido, santo Tomás até aceita como possível um universo eterno, mas criado (já que o universo pode não precisar de um começo, mas necessariamente precisa de uma causa), embora defenda, pela fé, que o universo teve também um início temporal. Ex nihilo significa “a partir do nada”, e não “depois do nada”.
O que Carroll considera importante ressaltar é que o Big Bang representa o começo deste universo; mas pode muito bem não ser o começo de tudo, aquele começo que associamos ao ato criador. Por isso as tentativas de usar o Big Bang como “prova” da existência de Deus erram o alvo; por outro lado, o fato de haver multiversos, ou que tenha havido um outro universo antes do nosso, não negam o fato de que tanto um universo eterno quanto um universo que teve início no tempo exigem uma causa última: um criador, e é aí que Hawking e Krauss erram a mão. Como santo Tomás de Aquino diz, “não apenas a fé afirma que existe um criador, mas a razão também o demonstra”.
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