A edição de março da Reason.com traz a resenha de um livro que ajuda a entender por que muitas controvérsias que a imprensa acaba descrevendo como conflitos entre ciência e religião na verdade são algo bem diferente. The Body Politic: The Battle Over Science in America foi escrito por Jonathan Moreno e resenhado por Ronald Bailey. A ideia principal do livro é que as novidades no campo da biotecnologia estão derrubando as divisões tradicionais entre esquerda e direita e criando novas categorias, que poderiam ser chamadas de “bioconservadores” e “bioprogressistas”, dependendo do seu grau de aceitação das novas tecnologias. A julgar pelo texto, tanto Moreno quanto Bailey parecem se incluir no segundo campo.
Pelo próprio nome dado aos grupos, vocês já podem imaginar como cada um deles se posiciona em relação à biotecnologia. O que Moreno explica é que esse posicionamento acaba colocando no mesmo lado grupos que nos acostumamos a ver como antagônicos. A resenha não chega a dar exemplos concretos, mas um deles está circulando no Facebook: já ouviram falar do Secular Pro-Life? É um grupo de ateus e agnósticos que são contra o aborto, e apresentam uma série de argumentos totalmente desvinculados da religião. Militantes pró-aborto se acostumaram a alegar que essa é uma questão de cunho religioso, em uma tentativa de desviar o debate para algo do tipo “se você acredita ser errado, não faça, mas não impeça outros de fazer” (uma lógica que, convenhamos, pode se prestar a muita coisa); mas o fato de haver tanto grupos religiosos favoráveis à legalização do aborto quanto grupos ateus pró-vida mostra que a realidade é bem diferente. Nas discussões recentes sobre o uso de células-tronco embrionárias no Brasil, a imprensa muitas vezes omitiu o fato de que havia religiosos e cientistas em ambos os lados do debate, tanto a favor quanto contra a destruição de embriões.
Segundo Moreno, em muitos casos os grupos aliados (especialmente no caso dos “bioconservadores”) compartilham do mesmo objetivo, mas não necessariamente dos mesmos princípios. Enquanto uns podem se opor a determinada técnica por ser contrária à dignidade humana, outros baseiam sua posição contrária no temor de que “ricos e poderosos acabem usando as novas tecnologias para superar e oprimir os pobres e fracos”, ou seja: uns enfatizam a dignidade e a moralidade, enquanto outros priorizam a igualdade. Assim, por exemplo, católicos e esquerdistas podem acabar do mesmo lado em alguns temas polêmicos de biotecnologia.
A ideia não é nova. Em 2009, em seu livro The future Church, o jornalista John Allen Jr. define dez temas que, segundo ele, redefinirão a Igreja Católica nas próximas décadas, e um deles é o da revolução biotecnológica, descrita no capítulo 6. Entre as “consequências possíveis” (p. 250-251), Allen cita uma redefinição da “guerra cultural” hoje em curso, e cita o tema dos alimentos transgênicos. Na entrevista que me deu em outubro e que eu recordei anteontem, o bioquímico Rafael Vicuña disse que a Pontifícia Academia de Ciências chegou a estudar o tema, mas o relatório final, que tinha uma visão favorável aos transgênicos, não virou documento oficial da PAC porque houve oposição de bispos e conferências episcopais. Como sabemos, a crítica aos alimentos geneticamente modificados é também uma bandeira dos movimentos de esquerda. Claro que entre o clero contrário aos transgênicos há bispos que são mais Guevaras de batina (se é que usam batina) que pastores de almas, e nesse caso a aliança com a esquerda não tem nada de improvável; mas, se considerarmos que há bispos bons, ortodoxos e genuinamente preocupados com os transgênicos, imaginá-los lado a lado com um José Bové da vida é inusitado. E acho bem provável que outros, antes de Allen, também tenham percebido essa redefinição das frentes de batalha.
Sem falar que nem mesmo a divisão entre “bioconservadores” e “bioprogressistas” é fixa, para desespero daqueles que, nas palavras do professor Carlos Ramalhete, colunista da Gazeta, insistem na mania moderna de classificar as pessoas em compartimentos estanques; acho até mais provável que as pessoas troquem de campo em diferentes assuntos. Quem é “bioprogressista” na questão dos transgênicos pode ser “bioconservador” ao defender a vida desde a concepção; o inverso também existe, com militantes antitransgênicos e favoráveis à pesquisa com embriões, por exemplo. Diante desse cenário totalmente fluido, tratar certas discussões como “debates de ciência contra religião” é no mínimo ingenuidade, e no máximo má-fé.
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