De volta do nosso recesso de carnaval (recesso ao menos para a maioria de vocês; eu estava de plantão), preparei um material especial para os leitores do Tubo, como prometido. Quem acompanha o blog desde novembro deve estar lembrado de um estudo que publiquei naquela semana especial sobre Darwin, em que o pastor e teólogo Bruce Waltke apresentava a outros teólogos evangélicos norte-americanos uma série de possíveis objeções à teoria da evolução, e pedia aos entrevistados que indicassem se concordavam ou não com aquela determinada afirmação. Algumas dessas objeções já conhecemos de cor e salteado, como a questão da idade do planeta. Mas a terceira delas me chamou especialmente a atenção. Traduzo aqui para vocês:
Leituras tradicionais de Gênesis 3,17-20 e Romanos 8,20-22 levam alguns evangélicos à convicção de que toda morte e corrupção são o resultado do pecado humano. Robert R. Gonzales Jr., decano e professor de Estudos Bíblicos do Seminário Batista Reformado de Easley (Carolina do Sul), em uma polêmica com Francis Collins, escreve: “Paulo, seguindo o ensinamento do Gênesis e do resto do Antigo Testamento, acreditava que o pecado humano tinha consequêncas ecológicas”. Assim, a terceira barreira da sondagem seria: A sentença divina de morte e corrupção na criação, em conexão com o pecado de Adão, não pode ser harmonizada com a teoria da criação pelos processos de evolução.
Antes de mais nada, duas coisas: “criação pelos processos de evolução” significa apenas que os cristãos creem que Deus é o criador do universo, pois o tirou do nada. Não tem nada a ver com o criacionismo atual. Já os trechos da Bíblia citados são os seguintes: E disse em seguida ao homem: “Porque ouviste a voz de tua mulher e comeste do fruto da árvore que eu te havia proibido comer, maldita seja a terra por tua causa. Tirarás dela com trabalhos penosos o teu sustento todos os dias de tua vida. Ela te produzirá espinhos e abrolhos, e tu comerás a erva da terra. Comerás o teu pão com o suor do teu rosto, até que voltes à terra de que foste tirado; porque és pó, e pó te hás de tornar.” Adão pôs à sua mulher o nome de Eva, porque ela era a mãe de todos os viventes. (Gênesis 3,17-20), e Pois a criação foi sujeita à vaidade (não voluntariamente, mas por vontade daquele que a sujeitou), todavia com a esperança de ser também ela libertada do cativeiro da corrupção, para participar da gloriosa liberdade dos filhos de Deus. Pois sabemos que toda a criação geme e sofre como que dores de parto até o presente dia. (Romanos 8,20-22)
É uma objeção que levanta questões interessantes. Se a morte só entrou no mundo após o pecado original, haveria animais predadores antes disso? E catástrofes naturais, como as que por exemplo levaram à extinção dos dinossauros? De fato, determinada interpretação desses (e de outros) textos bíblicos levaria a uma impossibilidade “temporal” da evolução, pois se os processos de seleção natural só pudessem ser “disparados” após o pecado original, não haveria tempo suficiente para as espécies se diversificarem como enunciado por Darwin. Por isso, procurei um padre católico e dois professores protestantes para saber deles se esta objeção realmente faz sentido.
O padre Celso Nogueira, dos Legionários de Cristo e especialista em ciência e religião, diz que uma leitura fundamentalista da Bíblia sequer poderia ser considerada “literal”, já que não respeitaria a intenção do autor humano: passar uma mensagem teológica, e não biológica (até já conversamos sobre isso a propósito do Dilúvio). Ele afirma que a Igreja Católica não compartilha desse tipo de interpretação. “No Gênesis os animais só começam a se matar depois que Caim mata Abel. Aqui é preciso ler comparando com o anterior. Adão e Eva se dão conta de que estão nus só após o pecado original. Antes não viam isso? Claro que viam, mas sua nudez não significava ameaça de ser cobiçado como objeto; só passa a ser assim depois do pecado. De modo similar, antes os animais se matavam, mas a aparente ‘crueldade’ da natureza não significava uma tentação para o homem”, afirma o padre. De fato, até santo Tomás de Aquino já tinha escrito sobre o assunto na Suma Teológica (I, q.96, a.1, ad.2, tradução livre minha, com negrito também meu):
Alguns sustentam que os animais selvagens e carnívoros, no estado de inocência, eram mansos com o homem e com outros animais. Mas isso se opõe à razão, porque o pecado não mudou a natureza dos animais, como se os que agora são carnívoros, como leões e falcões, fossem até então herbívoros. A Glosa do Venerável Beda a Gênesis 1,30 não diz que a erva e os troncos fossem dados como alimento a todos os animais e aves, mas apenas a alguns. Então, havia discórdia entre os animais. Mas isso não limitava o domínio do homem, como tampouco limita agora o domínio de Deus, cuja Providência dirige tudo. Desta Providência o homem era executor, como acontece agora com alguns animais domésticos, como quando ele alimenta com galinhas o falcão treinado.
O professor Agemir de Carvalho Dias, pastor presbiteriano e docente da Faculdade Evangélica do Paraná, diz que de um ponto de vista mais “liberal” essa discussão sequer existiria, ou seria totalmente irrelevante. Então, ele topa jogar o jogo com as regras dos fundamentalistas. “Lendo a Bíblia como eles leem, há respaldo bíblico (literal) para entendermos que os animais não agiriam de forma agressiva ou que não haveria catástrofes naturais antes da queda? Certamente não. A descrição que temos na Bíblia depois da criação é de que o mundo era sem forma e vazio (Gn 1,2), que traduz uma expressão idiomática do hebraico com o sentido mais ou menos de ‘caos’. No processo de criação Deus vai colocando ordem no caos, e mesmo depois de constituído o Jardim do Éden a criação não está completa, pois Deus ainda diz: ‘não é bom que o homem viva sozinho’ (Gn 2,18). O segundo motivo é que na própria descrição do jardim do Éden já temos a distinção entre animais selvagens e domésticos”, afirma.
Tanto para o padre Celso quanto para o professor Uipirangi Câmara, doutor em Ciências da Religião que dá aulas na Faculdade Teológica Batista do Paraná, um ponto central nessa discussão é definir qual seria essa “morte” que entrou no mundo apenas após o pecado original. “Com a queda de Adão, vem o mal espiritual, não a morte física”, afirma. O professor Dias acrescenta: “a morte que entrou no mundo com Adão é entendida em geral como sendo o afastamento do homem de Deus – é uma morte espiritual, no sentido de que o acesso a Deus está fechado e só poderá ser restaurado pela fé.” O padre Celso diz que os conceitos de “morte” e “vida” do Antigo Testamento vão além da concepção biológica. O homem, explica o sacerdote, tem uma alma imortal. “A alma (princípio vital) dos animais não é espiritual, é puramente material. Pelo contrário, a alma humana é espiritual, portanto não sujeita à morte, pois o que é imaterial não se divide em partes e portanto não se pode decompor. Como o ser humano é uma unidade de corpo e alma, a morte é uma violência a esta unidade. Mas esse não é o caso nos animais”, esclarece.
Os professores Câmara e Dias, no entanto, lembram que, ao contrário do caso católico, em que existe uma interpretação, digamos, “unificada” ou “oficial”, dada pelo Magistério da Igreja, mesmo dentro das igrejas a que eles pertencem (Batista e Presbiteriana respectivamente) não existe consenso – e muito menos entre diferentes tradições protestantes. Eles ressaltam que sua opinião é meramente pessoal e acreditam que, dependendo da comunidade, apenas uma minoria pensa como eles. Por isso não se poderia falar em uma “Teologia protestante”, mas em várias Teologias, de acordo com os diferentes grupos.
Até aqui, já é possível chegar a uma conclusão: não procede, segundo o padre Celso e os professores Câmara e Dias, a ideia de que a evolução proposta por Darwin seria impossível, já que antes do pecado original não haveria morte e corrupção. “Essa ilação que se faz para rejeitar, em nome da Bíblia, uma teoria científica é abusiva”, diz o padre Celso. Então, aquelas imagens que vemos no Animal Planet e assemelhados, de perseguições empolgantes em que às vezes os coelhos ou cervos dão um olé nos felinos (e às vezes viram comida de leopardo), existiam, sim, antes do pecado original. “As imagens do Gênesis tratam da relação do homem com Deus, com seu semelhante e com o mundo. Nada dizem do status dos animais e das plantas em si”, acrescenta o padre Celso.
Mas ainda podemos avançar na discussão. Os três entrevistados parecem concordar com Robert Gonzales quando ele menciona “consequências ecológicas” do pecado original. “O fato de um bicho comer outro faz parte da ordem determinada por Deus para a natureza. Mas o pecado original causou uma desarmonia na criação, uma desordem na maneira como o homem se relaciona com a natureza. Ele tinha a responsabilidade original de cuidar de tudo”, diz o professor Câmara, da Faculdade Teológica Batista do Paraná. O padre Celso continua a explicação: “o homem rompe sua relação harmônica com Deus quando quer ‘conhecer’ (em sentido bíblico, possuir), ‘o bem e o mal’, semitismo que indica todas as coisas. A cobiça produz a desarmonia, primeiro com Deus, gerando a desconfiança; depois, com o semelhante (perceberam que estavam nus e seus corpos se tornaram objeto de cobiça); e, por fim, com a natureza, pois a cobiça faz do homem um explorador da criação, não mais seu ‘jardineiro’; e a criação responde com hostilidade a isso.”
O professor Dias, da Faculdade Evangélica, traz exemplos da desarmonia entre homem e natureza usando o consumo e produção de energia. “O homem cria desordem quando ele acumula energia. A desigualdade é um exemplo, a epidemia de obesidade é outro. Já uma situação de ordenação divina ocorre quando Deus alimenta o povo no deserto após a saída do Egito: os israelitas recebem maná suficiente apenas para um dia – se eles acumulassem para outro dia, o alimento apodrecia. O ano sabático é outro exemplo: no sétimo ano não se pode plantar nem colher, deve-se deixar a terra descansar. O que se pressupõe é que o homem viveria em uma situação de equilíbrio com a natureza, mas esse equilíbrio foi rompido”, afirma. O pecado, diz o professor, perturbou o que seria um “equilíbrio simbiótico” entre o homem e a natureza. “O homem, para sobreviver, precisa dominar a natureza, o que leva à alienação do homem e à destruição da natureza. É assim que podemos interpretar o apóstolo Paulo quando ele diz que a vitória sobre o pecado em Cristo restaura a esperança desse equilíbrio”, completa Dias, remetendo a um dos textos bíblicos citados lá no começo. Mas esse tema, da relação do homem com a natureza (a real e a ideal, segundo o Cristianismo), já é um outro assunto igualmente fascinante, ao qual pretendo voltar aqui no Tubo.
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